domingo, 22 de maio de 2011

Hesse e minha adolescência


Minha adolescência foi recheada de livros. Aquela estante de minha tia acabou por se esgotar e tive que ampliar meus horizontes. Meu pai convenceu minha avó e minha tia que deveria estudar numa escola melhor, o então renomado, Instituto de Educação Caetano de Campos. Confesso que os hormônios me tomaram e estudar era a última coisa que eu pretendia fazer, mas a biblioteca cheia de novos autores me encantou. Tive uma primeira febre "russa" e li quase tudo de Tolstói e Dostoiévski. "Guerra e Paz" em quatro volumes, cada um com 400 páginas. Diversão garantida por algumas semanas. Natasha Rostov era minha amiga inseparável, um tantinho tola como toda adolescente e por isso mesmo, adorável.
Nesta época apaixonei-me por Pessoa, descobri em mim a força de Portugal e da alma portuguesa. Vivia em busca de poemas que me tocassem para decorar. Meu heterônimo predileto, Álvaro de Campos, era ao mesmo tempo ácido e melancólico. Torturado. Eu delirava com "Tabacaria" e "Lisbon Revisited". Tempos intensos de transformações e revelações. Amores nascentes e separações por vir. Tudo era traduzido pela literatura.
Por fim mas não ao cabo, apresentaram-me Hermann Hesse e abriu-se todo um mundo de novas percepções para mim. Hoje percebo que " Sidarta" lançou as bases de um novo contato com o Sagrado que veio despontar muito mais tarde. Passou a ser um dos meus livros mais queridos e que sempre releio de tempos em tempos. Não me canso de descobrir na jornada deste ser em busca da iluminação, pistas para chegar mais perto do eterno Mistério.


" Sidarta escutava. Naquele momento, era todo ouvidos, entregando-se por inteiro à própria atenção, receptáculo totalmente vazio, prestes a encher-se. sentia que àquela hora atingiria a derradeira perfeição na arte de escutar. Quantas vezes não ouvira todos aqueles rumores, a multiplicidade das vozes que vinham do rio, mas naquele dia lhe pareciam novas. Já não era capaz de identificá-las. Não conseguia distinguir as vozes jubilosas das choronas, as infantis das másculas. Todas elas formavam uma só, a lamentação da nostalgia, a risada do ceticismo, o grito da cólera e o estertor da agonia. Tudo era uma e a mesma coisa, tudo se entretecia, enredava-se, emaranhava-se mil vezes. E todo aquele conjunto, a soma das vozes, a totalidade das metas, das ânsias, dos sofrimentos, das delícias, todo o Bem e todo o Mal, esse conjunto era o mundo. Esse conjunto era o rio dos destinos, era a música da vida. Mas, quando ele escutava atentamente o que cantava o rio, com seu coro de mil vozes, quando se abstinha de destilar dele o sofrimento ou o riso, quando cessava de ligar a alma a determinada voz e de penetrar nela com o seu espírito, quando, pelo contrário, ouvia todas elas, a soma, a unidade, acontecia que a grandiosa cantiga das milhares de vozes se resumia numa só palavra, que era OM, a perfeição.
- Estás ouvindo? - tornou a indagar o olhar de Vasudeva.
Luminosamente resplandecia o sorriso do balseiro, pairando por cima das inúmeras rugas do semblante idoso, assim como o OM pairava por cima de todas as vozes do rio. Luminosamente resplandecia o seu sorriso enquanto fitava o amigo e com igual clareza luzia no rosto de Sidarta o mesmo sorriso. Sua ferida desabrochava como uma flor, sua mágoa fulgia. Seu eu incorporara-se na unidade.
Foi nesta hora que Sidarta cessou de lutar contra o Destino. Cessou de sofrer. No seu rosto florescia aquela serenidade do saber, à qual já não se opunha nenhuma vontade, que conhece a perfeição, que está de acordo com o rio dos acontecimentos e o curso da vida; a serenidade que torna as penas e as ditas de todos, entregue à corrente, pertencente à unidade."

Hesse, Hermann, Sidarta, Rio de Janeiro, Record, 2008.

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