sábado, 31 de dezembro de 2011

Em 2012 eu quero...

Hoje me lembrei de um paciente meu que, depois de um tempo fazendo psicoterapia confessou que, bem no começo do processo, me achava um pouco tola e feliz por demais...Depois disse ter percebido que eu podia entrar em lugares sombrios sem me assustar ou me perder. Conto isto aqui quando um novo ano se descortina diante de nossos olhos e todas as possibilidades se apresentam. Mesmo quando estava na faculdade sempre escolhi o caminho da saúde, da transformação e do crescimento. Apesar de admirar e muito Freud e afins pelas teorias tão bem elaboradas, pendia para o lado de Rogers, na postura amorosa e de Reich, com seu anseio pela vida e, por fim,cheguei a Jung que acredita que existe um longo processo em que temos apenas que nos tornarmos o ser único que somos nós mesmos. Com tudo o que isto requer de coragem e ternura...
Agradeço a este ano intrigante que acaba. Coisas estranhas aconteceram, muitas ilusões se desfizeram, personagens deixaram a minha história, pessoas muito queridas chegaram e dores que costumava acalentar se foram. Nunca é fácil desapegar daquilo em que acreditamos, mesmo depois de saber que estas crenças não valem mais. Por isso a vida, por vezes, é impiedosa e arranca nossos tapetes... Agradeço por isso também.
Agora a contemplar esta imensidão que é 2012, me proponho a ser cada dia mais apaixonada pela vida, pelos amanheceres e entardeceres. Quero me banhar de música , poesia e de histórias. Quero compartilhar sorrisos, canções e indignações com meus amigos queridos de longe de de perto. Quero encontrar meus queridos e sentar-me à mesa falando bobagens e profundidades. Quero também fazer diferença em algumas situações, instigar reflexões e dúvidas, criar novos mundos onde tudo é deserto. Quero enfim continuar a ser um tantinho tola e acreditar na vida, nas pessoas e nas transformações... E sobretudo quero ser um pouquinho mais do que vim a ser: eu mesma!
Ah, ia me esquecendo...e quero muito, muito ir para casa muitas vezes...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

No ano que vem eu vou: Simplicidade

Chega a última semana do ano e com ela a tão famigerada e esperada faxina para esperar o ano novo. Rasgo papeis velhos, faço doação de roupas, sapatos e tudo o mais que ocupa espaço e que não uso mais. Sempre me deparo com tanto desperdício que fico um tanto deprimida. Esta forma de viver cercada de tantas coisas e ainda assim acumulando...
Há algumas semanas fui a um evento chamado TEDxdaLuz. Um encontro para disseminar e gestar ideias que podem mudar o mundo. Pessoas interessantes , algumas muito queridas, falaram de propostas de um novo fazer, mais consciente. Uma dela  me chamou a atenção em especial: Eduardo Marinho. Um rapaz que nasceu rico e que desde muito cedo estranhou esta assimetria de posses entre os humanos. Certo dia, depois de crescido, abandonou tudo e foi experimentar como se vive sem ter nada de seu. Caminhou pelo Brasil, trabalhando aqui e ali, recebendo generosidade e hospitalidade de muitos e estranheza de outros.Aprendeu que podia ser feliz com muito pouco. Hoje, artista plástico, vive tranquilamente com os filhos numa comunidade no Rio.
Desde que o ouvi, penso bastante nesta experiência. Claro que não vou deixar tudo e sair andando. Mas quero, a cada dia, aprender a discernir aquilo que preciso daquilo que a cultura me impõe como imprescindível. Quero consumir menos e ser mais simples. Acumular menos. Menos coisas, menos demandas, menos preocupações, menos a controlar e segurar. Tornar-me mais disponível para esta jornada tão cheia de aventuras que é a vida. 
Que em 2012 a vida seja leve porque joguei muita coisa fora e não comprei tudo de volta...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ano que vem eu vou: Responsabilidade

Trabalho em consultório há algum tempo. Tempo suficiente para saber quais os erros mais comuns que nós, humanos demasiadamente humanos, cometemos. Fim de ano. Quem sabe possamos refletir e nos ampliarmos um pouco...
Temos muita dificuldade em lidar com as escolhas. Quanto mais opções, pior fica. Queremos tudo. Queremos acumular. Escolher implica sempre perder. Deixar pra trás possibilidades. Gostamos imensamente de ter alguém para culpar por nossas escolhas e por nossos erros. Se algo deu errado, é porque Deus(sim, ele é sempre culpado! até para quem é ateu) não cuidou, se descuidou, não existe ou é vingativo. Ou foi o pai, a mãe, a irmã, o marido, namorado, cachorro ou papagaio. Difícil mesmo é assumir nossa completa ignorância na maior parte das coisas que interessam na vida...
Se por outro lado carregamos uma culpa esmagadora é porque não conseguimos lidar com a impotência diante do "grave e constante" da vida. Não protegemos nossos filhos, não salvamos, nem curamos nossos pais...Somos impotentes e estamos à mercê das intempéries. Contamos com o Sagrado para quem ainda carrega alguma centelha de fé nele.
Até aqui um certo amargor sobe à boca...Mas se pensarmos que se somos nós os construtores de grande parte de nossa realidade podemos ir além da Onipotência culpada e resgatar nosso pequeno e possível reino de atuação. E isso fará toda a diferença. Responder por si, por suas escolhas e por seus atos é o que, de alguma forma, nos torna adultos neste mundo tão infantilizado.
Em 2012 que possamos nos responsabilizar...


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Resoluções para meu novo ano


Todo ano é a mesma coisa....Tenho mil resoluções de Ano Novo, escrevo-as todas e me ponho a imaginar como será a vida quando elas se cumprirem. Quando dançava com Ana Figueiredo, no final de cada ano ela confeccionava cadernos preciosos para servir de diários de viagem na dança,nos mitos e na vida. Num destes cadernos ela incluiu este texto de Frei Betto e passei a usar estas resoluções como proposta para os anos que viriam...

Alvíssaras
No próximo ano, fecharei a minha caixa de Pandora e farei passarinhar todos os bons propósitos que desafiam a minha fé. Recolherei num jardim de tulipas essa tristeza d’alma que definha o meu ego arrastada pela vaidade.
No próximo ano, soterrarei de perdões o meu mal-querer e de afagos essa sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Erguerei a minha taça à vitória do outro e brindarei de louvores as conquistas dos que invadem a minha reserva de caça. Serei dom e não dor.
No próximo ano, fecharei as asas da ambição e, vazio de desejos, cavarei túneis no mais profundo de mim mesmo para deixar fluir as águas da plenitude.
No próximo ano, desviarei o olhar da lascívia que esgarça o meu espírito e os ouvidos aos tambores que me impedem dançar na contramão. Não buscarei senão os odores suaves da brisa matinal e darei ao meu paladar o que amarga a língua e adoça o espírito.
No próximo ano, porei em prática sábias lições de vida: pão que se guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o contrário do medo não é a coragem, é a fé. Sairei à rua repleto de silêncio, grávido do ser que me transfigura em morada divina.
No próximo ano, segredarei aos peregrinos os três aforismos de meu bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre pretérito ou futuro.
No próximo ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de suculentas alegrias e nem darei a meu corpo o que não empanturra o espírito.
No próximo ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para em seus pés irradiar sombras.
No próximo ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem boas-novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições.
No próximo ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio. Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o fragor das ondas fira a pele porosa das praias.
No próximo ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça, nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios. Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que suplicam uma côdea de pão e um gole de paz.
No próximo ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e, recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até embriagar-me de insensatez.
No próximo ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos.
No próximo ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda-gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens.
No próximo ano, nomearei para o governo da cidade um cavaleiro que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao clamor dos desvalidos.
No próximo ano, farei de Deus o meu pai e o meu pão, e abrirei em laços o meu abraço, até transmutar solitários em solidários. Amarei sobre todas as coisas, para que a minha riqueza, despojada de bens, seja farta em afetos. Fecharei os olhos para ver melhor e, ao crepúsculo, serei consumido e consumado pelas chamas que ardem no lado avesso do meu ser.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Conto de Natal (Final)

Bela história que assim como o Natal aponta para o ciclo de vida-morte-vida e para todas as maravilhas que brotam disso. Quando pela primeira vez li este conto só me foquei na tristeza da morte...Agora consigo compreender que a vida sempre volta e isto muito me conforta. 





Nesse quartinho frio no sótão, não havia luz a não ser por uma janelinha embaçada na lateral do telhado, através da qual brilhava aquela estrela enorme.
"Ai, pobre de mim", pensou o pinheiro tateando todos os galhos para ver se havia alguma fratura. "o que eu fia para ser abandonado num lugar tão frio e solitário?"
Mas ninguém ouviu. E ali o pinheiro ficou muitos dias e muitas noites.
Certa noite, porém, com o canto do olho, o pinheiro viu quatro pontos vermelhos reluzentes. Eram os olhos de dois ratinhos minúsculos que ocupavam as paredes do sótão. "Ah", disse-lhes em voz baixa, "ah, minhas senhoras, sabem me dizer quando virão me buscar, quando voltarei para a sala especial?" O camundongo de macacão e cachecol começou a rir e a gaguejar: "V-v-v-vir para levar você de volta para a sala especial? Ha, ha, ha."
Mas o outro camundongo, de vestido e avental branco, cutucou o companheiro e falou com a árvore com gentileza: "Querida árvore, ora, você teve uma vida boa, não teve?"
"Tive", concordou a árvore, com tristeza.
"Ah, sei que você sentia ter nascido para essa vida, tanto que não desejava que ela mudasse. Mas..." , e nesse ponto ela afagou a árvore, "todas as coisas boas, árvore querida, mesmo as coisas boas, têm seu fim."
"Essa época precisa terminar?" Indagou o pinheiro.
"Sim", respondeu o camundongo, erguendo a mão e acariciando-a novamente. "Essa época já terminou. Mas agora começa um tempo diferente. Uma nova vida, um tipo de vida diferente sempre se segue à antiga. Você vai ver."
 E os dois camundongos fizeram companhia à arvore a noite inteira. Contaram histórias e cantaram todas as músicas que conheciam. O pinheiro perguntou se os camundongos não gostariam de subir nos seus galhos para se aquecer, e eles disseram que sim, muito obrigado, e subiram. Juntos eles dormiram durante a noite escura com a grande estrela lá fora se aproximando cada vez mais da janela, quase como se soubesse de seus destinos e, com pena, lançasse sua luz ainda mias sobre eles.
Pela manhã, o pinheiro e os camundongos foram despertados abruptamente pelo ruído de passos pesados na escada, e o casal de camundongos saltou dos galhos do pinheiro. "Adeus, querido amigo. Lembre-se de nós como nós nos lembraremos de você e da sua bondade." E os camundongos correram para a fresta na parede.
A porta do sótão foi aberta com violência, e o pai, usando um gorro de lã e um sobretudo, agarrou o pinheiro e o arrastou pela longa escada abaixo, pela porta, até o quintal. Ali, deitou o pinheiro num toco velho e ergueu muito alto um machado enorme, que caiu com o mais terrível dos pesos, provocando os ruídos mais medonhos de madeira dilacerada. Com o primeiro golpe, a árvore achou que ia morrer com a dor, e antes do segundo já estava inconsciente.
Muito tempo depois, o pinheiro acordou novamente no canto da sala especial e, embora não se sentisse muito bem, parecia que lhe faltavam apenas sua copa verde e que seus braços estavam arrumados de um modo totalmente diferente, em pedaços. No entanto, viu, nas poltronas diante da lareira, o velho casal que conhecera quando chegou à casa, vindo da floresta. Eram eles que haviam banhado seu ferimento com água fresca. Ali estavam eles, bem juntinhos diante do fogo. Apesar do seu estado, o pinheiro sorriu com o amor que via entre os dois.
 O velho levantou-se e jogou um dos braços do pinheiro no fogo. Embora de início o pinheiro resistisse e protestasse, logo compreendeu, enquanto a chama queimava cada vez mais fundo no seu coração, que aquela era sua alegre missão no mundo - dar calor para pessoas como essas. Ah, ser aquecido de dentro para fora pelo amor, e de fora para dentro pelo amor de alguém como ele.
 O pinheiro ardeu então com uma força ainda maior. "Ah,nunca pensei que pudesse queimar com tanto brilho, que pudesse encher uma sala com tanto calor. Amo esse velhos com todo o meu coração." O pinheiro e todos os nós na sua madeira - e no seu cerne - explodiam de alegria nas chamas.
 Noite após noite, o pinheiro permitia essa entrega. Era tão completa sua alegria por ser útil e ter vida que ele queimou e queimou até não restar mais nada dele, a não ser as cinzas que jaziam no fundo da lareira.
Quando estava sendo varrido da lareira pelo velhos, pensou que sua vida fora gloriosa, mais do que esperara, só que agora a nada poderia aspirar.
O casal de velhos era muito cuidadoso e, com suas mãos velhas e sábias, varreu delicadamente cada fragmento de cinzas da lareira. Puseram as cinzas num saco macio e muito usado e o guardaram até a chegada da primavera.
Quando a terra começou a se aquecer, o velho e a velha trouxeram para fora da casa o saco de cinzas, entraram pelos jardins e espalharam cuidadosamente as cinzas do pinheiro por todas as videiras e também por todas as suas terras. Eles misturaram as cinzas do pinheiro ao solo. Com o tempo, quando as chuvas e o sol da primavera chegaram para ficar, as cinzas sentiram sinais de vida por baixo delas.
Aqui e acolá, por baixo, através e em volta das cinzas, surgiam minúsculos brotos verdes das entranhas do solo, e o pinheiro deu milhares de sorrisos e milhares de suspiros na sua felicidade por voltar a ser útil.
"Ai, eu não sabia que podia virar um monte de cinzas e ainda assim voltar a produzir tanta vida nova. Que sorte coube à minha vida. Cresci no isolamento da floresta. Mais tarde, que belos dias e noites de copos a tilintar, de luz de velas e cantorias eu vim a conhecer. Na minha época de solidão e carência, na mais escura das noites, tive a amizade de estranhos, como se fôssemos uma só família, ou até mais do que isso. Mesmo quando estava sendo dilacerado pelo fogo, descobri que podia emitir imensa luz e calor do meu próprio coração. Que sorte, como fui afortunado.
"Ah", suspirou o pinheiro, " de tudo que cresce, cai e cresce novamente, é só o amor pela vida nova, e apenas ele, que dura para sempre. Agora estou em toda a parte. Está vendo como vou longe?"
Naquela noite, quando a grande estrela cruzava o céu noturno do universo, o pinheiro jazia sobre a terra abençoada, aninhando-se junto às raízes e sementes para aquecê-las com suas próprias cinzas, nutrindo para sempre todas as coisa que crescem; e essas, por sua vez, nutrindo outras, que por sua vez nutririam ainda outras, por todas as gerações futuras. Naquela lindíssima terra, da qual ele vinha e para a qual agora voltava, ele dormiu bem e teve sonhos profundos, cercado ali - como um dia estivera cercado antes no meio da floresta - por aquilo que é muito maior, mais majestoso e muito mais antigo do que jamais se conheceu.

Estés,Clarissa Pínkola, O Jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o que não pode morrer nunca - Rio de Janeiro,: Rocco, 1996

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Conto de Natal (Parte II)

E assim continua a história de nosso amigo pinheiro...



Afinal, quando ia escurecendo, o trenó com a família e a árvore no reboque estacionou diante de um chalé coberto de neve. Um velho e uma velha saíram pela neve adentro e se aproximaram do reboque, exclamando? "Que árvore linda, linda, tão alta e tão cheia. Do tamanho exato. Perfeita."
"Ah", pensou o pinheiro, "como é bom ser bem-vindo. Eu me pergunto se este não é o lugar aonde alguns dos meus vieram ao longo dos anos. Ah, espero voltar a vê-los em breve".
 Os velhos o tiraram do reboque com mãos cuidadosas. Eles o admiraram, o afagaram, virando-o de um lado e do outro. Mergulharam o tronco cortado de árvore num balde de água fresca que aliviou grande parte de sua dor.
E quando apagaram os lampiões, o pinheiro, que amava a profunda escuridão da floresta, começou a amara também a escuridão daquela casa. Apesar de estar acostumado a ver o céu noturno inteiro, cheio de estrelas, e agora só enxergar um pedacinho de céu através de uma pequena vidraça na janela, havia uma estrela que cintilava mais do que as outras. Ao vê-la, o pinheiro pressentiu a promessa de que muito ainda estava por acontecer.
Com estes pensamentos, ele, como o restante da casa, logo adormeceu num sono profundo e feliz.
Bem cedo na manhã do dia seguinte, houve muito barulho e rebuliço com todo mundo se cumprimentando, se queixando e tagarelando. Alguém estava tirando a poeira do balde de aparas de lenha para enchê-lo ruidosamente. Os cachorros entraram latindo de alegria, seguidos pela crianças, depois a mãe e o pai, os mais velhos e também outras crianças e amigos, todos trazendo muitas caixas.
 A árvore esperava, literalmente prendendo a respiração de tanta emoção. As pessoas tiraram as tampas das caixas, e dentro delas havia enfeites de todos os formatos e tamanhos, feitos de vidro finíssimo. Havia guirlandas de frutinhas e velas com pequenos papeis coloridos em copinhos de vidro.
Em toda a sua volta, a árvore foi adornada e enfeitada com esses objetos. E depois, que maravilha! Dezenas de velas foram acesas, uma após a outra,e arrumadas em círculos e espirais até os galhos mais altos, deixando o pinheiro em glórias absoluta.
"Ah, isso é tudo o que os mais velhos lá na floresta descreviam, e muito mais", exclamou o pinheiro. Ele fez um esforço enorme para esticar ainda mais os seus galhos enquanto procurava ficar o mais bonito possível. as crianças gritavam e corriam ao redor, enquanto outros tocavam e cantavam; ah, que alegria, especialmente quando uma linda criança, erguida pelo avô, colocou uma estrela de papel no ponteiro bem no alto da árvore.
Naquela noite, depois que as crianças dormiram e o pinheiro cochilava, enquanto o brilho da grande estrela entrava pelas janelas, os mais velhos entraram furtivos na sala com presentes embrulhados em papel pardo liso e bonito, enfeitado com retalhos de pano que eles haviam unido com uma linha colorida de bordar. No consolo da lareira, puseram cavalinhos, porquinhos, patinhos e vaquinhas feitos de maçãs e laranjas, com gravetos enfiados no lugar das pernas, e olhos e focinhos esculpidos de modo a parecer que estavam sorrindo. E todos foram feitos com mãos cheias daquele tipo de amor que deseja surpreender e agradas as criancinhas.
Pela manhã, a árvore acordou sobressaltada quando as crianças entraram correndo, gritando e exclamando: "Ah, olhem como a árvore está linda, e os presentes ali embaixo". E elas abriram os embrulhos e exibiam belas bonecas de trapos com densas cabeleiras castanhas de lã e vestidos de crochê, feitos a mão. Em seguida, desembrulharam carroças feitas de restos de madeira com rodinhas que giravam de verdade.
Elas arrancaram as castanhas do pinheiro, e a árvore farfalhava os galhos, feliz por participar de tudo com que havia sonhado e muito mais.
Mais tarde, as crianças tiravam uma soneca no tapete e os adultos também cochilavam. Até mesmo os cães e os gatos estavam adormecidos, a sonhar. E o pinheiro refletia sobre seu destino incrível e sobre todos os acontecimentos do dia. Estava felicíssimo.
Naquela noite, quando todos estavam na cama e roncando baixinho - o cão e o gato, assim: zzzzzz; as crianças, assim: zzzzzzz: a mãe, o pai e os mais velhos, assim: ZZZZZZ - a árvore dormia profundamente e sonhava dom sua nova vida.
No dia seguinte e no outro, a árvore continuou orgulhosa na sala, embora estivesse um pouco desarrumada por ter todas as fitas arrancadas e porque sua estrela estava meio caída sobre um dos seus olhos. Apesar disto, tudo estava uma glória mesmo quando o pinheiro viu que a maioria das crianças e dos adultos subia nos trenós e ia embora. "Ora, estarão de volta hoje à noite", pensou o pinheiro, " e então vão mais uma vez pôr meu tronco machucado numa água fresca e nova. Vão me decorar de novo e a festa vai recomeçar".
O pai entrou então, com passos pesados, e tirou todos os enfeites do pinheiro, guardando-os em caixas com camadas de enchimento de algodão. Depois, tirou a árvore da água e a sacudiu com tanta força que qualquer outra coisa que pudesse estar escondida nos galhos cairia ao chão. ele deixou as guirlandas de frutinhas secas na árvore e a arrastou da sala.
O pinheiro apesar de surpreso com este tratamento grosseiro, ainda estava esperançoso." Ah, eu me pergunto para que sala iremos agora." Ele imaginou todo o processo jubiloso da decoração, das crianças dançando e de todos cantando, e suspirou ao pensar nisso tudo.
O pai, no entanto, arrastou de maneira descuidada o pinheiro pela escada de madeira acima, que não parava de subir e cujos degraus iam se estreitando cada vez mais quanto mais eles subiam. E afinal, no patamar mais alto, o pai abriu uma pequena porta e, sem-cerimônia, jogou a árvore lá dentro. A árvore exclamou alarmada no que lhe pareceu um grande grito: " Que tipo de escuridão é esta?" Mas a verdade é que ninguém pareceu ouvir, pois o pai fechou a porta e desceu de volta pela escada.


Continua....


Estés,Clarissa Pínkola, O Jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o que não pode morrer nunca - Rio de Janeiro,: Rocco, 1996

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um conto de Natal (parte I)

Chega o Natal . Compras. Pressa. Gente querendo driblar os desafetos e as mágoas nas comemorações  em família. Insatisfações...
Esquecido é mesmo o suposto aniversariante. Bem sabemos que Jesus não deve ter nascido no solstício de inverno. Muitas festas pagãs eram celebradas nesta data e resolveram sobrepor uma mitologia a outras. Certo é que este é um nascimento que mudou o mundo. Como diria Gabriel: " O que era não será mais!" Da prática de arrancar dentes e olhos poderíamos dar a outra face. No sussurro que o Arcanjo fez no ouvido da menina Maria estava contida toda uma jornada. Dizem que a ela foram reveladas naquele sussurro a vida e a morte do Filho. Sim, porque não há sentido no Natal sem a Páscoa. Vida e Morte de um Ser Sagrado. Pena que tão soterrado pela tradições, assim ditas, cristãs.
Clarissa Pínkola resgata neste conto esta ligação de vida, sacrifício, morte e eternidade que, se nos aprofundarmos, se revela no mito do Natal.







Era uma vez, há muito, muito tempos, na época em que os bichos ainda falavam e os humanos conseguiam entender a língua dos animais, um pinheirinho que, embora pequeno em estatura, era imenso em espírito.
Ele vivia nas profundezas de uma floresta cercado de árvores muito majestosas e mais antigas do que qualquer árvore jamais conhecida até então.
A cada inverno, pais, mães e seus filhos penetravam na floresta em velhos trenós de madeira. Com muita felicidade e animação, eles cortavam algumas das árvores de tamanho médio e as levavam embora. Os cavalos veneráveis que puxavam os trenós resfolegavam, e os sinos nos seus arreios retiniam. O riso da crianças e dos adultos ecoava pelo bosque inteiro.
Ah, sim, o pinheirinho ouvira sussurros entre as árvores mais velhas, as que eram altas demais e grandes demais para serem derrubadas pelo machado e arrastadas dali - é, ele ouvira a história de que as árvores cortadas eram levadas para um lugar maravilhoso, chamado casa.
Ali, eram tratadas com o máximo respeito, afagadas por muitas mãos e postas numa água que lhes aplacava a dor. Depois, ao que se dizia, uma família inteira de pessoas sorridentes se reunia ao seu redor. Elas enfeitavam a árvore com objetos pequenos e lindos: pequenos globos feitos de fita com amêndoas dentro, doces e outras guloseimas. Velinhas esplêndidas eram acesas e colocadas nos galhos e ramos da árvore. Finalmente, decorada com balas, guirlandas de frutas e às vezes até enfeites de vidro e minúsculos espelhos coloridos, a árvore se tornava o convidado mais  reverenciado da casa. Era de fato uma das glórias masi magníficas que se poderia um dia conceder a uma árvore
Entre as árvores mais velhas que conheciam esses assuntos, dizia-se que essa era, para os humanos envolvidos uma época de enorme alegria, pois lindas criancinhas vinham cantar, o fogo ardia em cada lareira e mesmo as estrelas no céu pareciam brilhar ainda mais.
De acordo com a descrição das mais velhas, em toda a parte moças e rapazes podiam ser vistos apressando-se e carregando para o salão o alimento que tivessem para compartilhar com todos. As velhas usavam seus melhores aventais brancos. Os velhos, seus melhores ternos e chapéus pretos. E todas as mulheres usavam seus melhores vestidos pretos. Todos os meninos usavam calças que sempre davam coceira, e as meninas, saias perfeitas para ensaiar mesuras. Ah, tudo aquilo parecia perfeitamente maravilhoso. E era com isso que o pinheirinho sonhava.
Ano após ano, ele esperava que o verão passasse, que o outono chegasse e afinal viesse a beleza do inverno. Quando sentia o frio cortante dos ventos, se alegrava. Ficava então felicíssimo no seu belo manto verde que se enchia mais e mais a cada ano que passava. E, também, a cada ano, no inverno, os trenós vinham e cortavam as árvores novamente, enquanto as crianças brincavam e faziam bonecos de neve com formato de anjo nos grandes montes acumulados pelo vento.
Apesar de o pinheirinho ser tímido, ele não conseguia se conter e a cada ano gritava com mais atrevimento: " Venham me escolher! Olhem para mim! Adoro crianças. Adoro essa comemoração fabulosa. Olhem para mim! Por favor! Venham me escolher!"
 Ano após ano, porém, ninguém o escolhia. Logo muitas árvores  haviam sido retiradas da floresta ao seu redor. Agora o parente mais próximo estava a uma boa distância, e o pinheirinho estava bastante só, mas também em pleno sol e assim ele foi crescendo, crescendo, até ficar muito mais alto do que antes.
No inverno seguinte, voltaram os cavalos puxando um trenós com o pai, a mãe e crianças risonhas. Os cavalos empertigados passaram direto pelo pinheirinho, pois o pai estava avaliando um denso aglomerado de árvores mais ao longe. "Espere", gritou uma das crianças, "aquele ali atrás, aquele sozinho." E o pinheirinho começou a tremer de esperança.
"Ah, isso mesmo! Cheguem mais perto! Olhem para ima! Por favor! Venham me escolher!" O pinheirinho se esforçava para ficar mais reto e mais alto. E a família deve ter ouvido o que dizia, pois o trenó parou, os cavalos deram meia-volta e logo a família estava abrindo caminho na neve espessa para examinar a árvore.
"Ah, olhem como os galhos são cheio de vida", exclamou uma criança que tinhas as bochechas perfeitamente rosadas. "Ah, vejam como essa árvore está verde e vigorosa", disse a mãe. "É", respondeu o pai, "essa aqui não parece nem alta, nem baixa demais, está perfeita para nós."
E o pai apanhou seu machado no trenó. Com o primeiro golpe, o pinheiro sentiu a maior dor de toda a sua vida. " Ai", gritou a árvore, "vou cair". E nesse exato momento , ele desmaiou. O machado continuou os golpes até que a árvore fosse separada da sua raiz, derramando grande quantidade de neve ao tombar.
Muito mais tarde, o pinheiro voltou a si no reboque que vinha dançando atrás do trenó. Tilintavam os sininhos nos arreios dos cavalos, e o pinheiro ouvia a conversa e o riso das pessoas. A dor mais terrível parecia estar passando agora; além disso, ele tinha uma vaga lembrança de que estavam indo a alguma parte, a algum lugar importante, lindo e maravilhoso, a um lugar que ele havia desejado ver todos os dias e todos os anos da sua vida passada.

Continua....

Estés,Clarissa Pínkola, O Jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o que não pode morrer nunca - Rio de Janeiro,: Rocco, 1996

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O Juiz Nasrudin

Este é um personagem que sempre traz ensinamentos de formas inesperadas e nos faz rir de nossas obscuridades...

O Juiz Nasrudin

Quando o mullah Nasrudin era o juiz de seu vilarejo, uma figura desgrenhada entrou no tribunal, exigindo justiça.
- Fui emboscado e roubado, logo na saída desta vila. Alguém daqui deve ser o culpado. Exijo que encontrem o criminoso. Ele levou minha túnica, minha espada e até minhas botas.
- Deixe-me ver - retrucou o mullah - Ele não levou a sua camisa, que você ainda está vestido.
- Não, minha camisa ele não levou.
- Nesse caso, o criminoso não é desta vila. As coisas são feitas por inteiro aqui. Não poderei investigar o seu caso.

Histórias da alma; Histórias do coração: parábolas e narrativas do caminho espiritual e na contemporaneidade. São Paulo, Pioneira, 1994.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Manoel de Barros cria sua naturezinha...

Hoje é aniversário de um dos meus poetas mais amados. Tão simples, mas tão simples que chega a doer de tanta beleza descoberta nas coisas ínfimas: Manoel de Barros.

O Lápis


É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as manhãs elaborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queira que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular.
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

Barros, Manoel - Poesia Completa - São Paulo, Leya, 2010.

O nascimento do poema

Semana em que se comemora o nascimento de um ser Divino. Dizem que sua mãe engravidou ao ouvir do Arcanjo anunciador a revelação. Dizem que a Palavra é que trouxe à luz a Criança Sagrada. Assim nascem os mundos e a beleza. Adélia Prado, que é sempre visitada pelo sopro divino, sabe bem disso...


O Nascimento do Poema


O que existe são coisas, 
não palavras. Por isso
te ouvirei sem cansaço recitar em  búlgaro
como olharei montanhas durante horas,
ou nuvens. Sinais valem palavras,
palavras valem coisas,
coisas não valem nada.
Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo,
não faltou a meu choro este arco-íris: 
o luto irá bem dom meus cabelos claros.
Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras belas?
Mármore, sol, lixívia.
Entender-me sequestra de palavra e de coisa,
arremessa-me ao coração da poesia.
Por isso escrevo os poemas
pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal. 
recuso-me a acreditar que homens inventam as línguas,
é o Espírito quem me impele, 
quer ser adorado
 e sopra no meu ouvido este hino litúrgico:
baldes, vassouras, dívidas e medo,
 desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno.
Não construí as pirâmides. Sou Deus.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Ainda sobre encontros...

Acredito  nos encontros humanos. Acredito que tudo o que somos vem à tona quando nos relacionamos. Os encontros nos revelam e nos produzem. Acabei de ler este relato de uma amiga queridíssima que mora na Suíça.
Num instante surge a possibilidade de tocar e ser tocado pelo outro. Assim a vida pode ser sempre rica e cheia de  nuances inesperadas. Bendito seja o humano que ainda se abre para outro humano. Dele será o reino da gentileza e da compaixão!

Deus, permita que eu enxergue o que se passa no coração do outro mesmo que ele dissimule e pareça estar bem... Ontem fui tomar o bonde (aqui se chama tram) e sentei ao lado de uma senhora que tinha um caderno nas mãos e uma sacola. Estava eu indo para casa e aqui não existe o hábito de falar com estranhos, principalmente nos transportes públicos. Porem algo meu chamou a atenção nela: o olhar desviado do meu, o zelo pelo caderno e o fato dela o abrir constantemente mas não prender-se muito nele. De repente algo dentro de mim saltou e virei para ela e perguntei se estava bem. Ela me olhou espantada e disse de forma tão rápida: Sim, estou bem ..porque vc pergunta? E eu respondi: Não sei, apenas senti aqui dentro uma sensação que existia algo que se passava com você. Ali, de repente, ela olhou para mim e seus olhos encheram-se de lágrimas. E ela chorou por uns minutos e eu não sabia mais o que fazer. O toque físico aqui é interpretado como invasão de privacidade e eu simplesmente toquei no dorso de sua mão. Ela ficou quieta e virou-se para mim e disse aquilo que nunca mais esquecerei. Ela disse: eu entrei neste bonde com meu coraçāo espatifado pois perdi meu pai há exatos dois anos e fazia este percurso de bonde com ele quando era pequena e ia a escola. Trouxe aqui comigo o caderno que usava e aqui dentro tem fotos dele. Estava tāo desencantada de tudo e do mundo e me sentindo tão só. Mas sua pergunta se eu estava bem resgatou-me do fundo deste poço e me trouxe de volta a margem. E eu lhe agradeço por isto. Neste momento ela levantou-se, olhou-me nos olhos e os fechou novamente. E disse-me: eu me chamo Beatrice e eu lhe agradeço por ter se preocupado comigo e, assim, ter trazido um pouco do meu pai para mim. E, num misto de envergonhamento e alívio, ela desceu do bonde. E ali fiquei olhando pela janela até vê-la dobrar a esquina. E então chorei. Nāo apenas pela Beatrice, por seu pai e seu caderno de fotos...mas também pelo caderno que levamos no coração e que, por estar tão bem escondido, não fica tão visível ao outro. Ali criou-se um laço de minutos mas que restaura e cura. Obrigada Beatrice por ter me resgatado, sem saber, para as margens...


Relato de Myrna Melo diretamente de Zurique


Imagem:
Hand-Painted Art Reproduction with Oil on Canvas
Dante Gabriel Rossetti
Tate Gallery London United Kingdom

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Paraíso é aqui

Há tempos li um livro de um psicoterapeuta italiano falando sobre a arte de ser gentil . Gosto do tema e achei a abordagem interessante. Ainda mais que o autor recheia a obra de pequenas histórias ilustrativas. Gentileza gera gentileza já dizia o profeta...



Uma história judaica


Conta, uma história judaica, que existia um homem que era oprimido por sua família. Sua mulher o tiranizava e atormentava. Seus filhos riam dele. Ele se sentia uma vítima e pensava que havia chegado a hora de partir e encontrar sua doce Jerusalém: o Paraíso. Depois de muito procurar, ele conhece um velho sábio que lhe ensina em detalhes como chegar lá: você tem de andar por muito tempo, e acabará chegando. O homem se põe a caminho. Caminha o dia inteiro e, à noite, exausto, pára numa hospedaria para dormir. Metódico, ele decide, antes de dormir, deixar os sapatos apontando na direção do Paraíso, para garantir que irá acertar o caminho na manhã seguinte. Mas durante a noite, enquanto dorme, um diabrete travesso entra no quarto e vira os sapatos na direção contrária.
Na manhã seguinte, o homem acorda e se põe a caminho, desta vez na direção oposta à do dia anterior - voltando assim ao ponto de partida. À medida que avança, o cenário vai ficando cada vez mais familiar. Ele chega à cidadezinha em que sempre viveu, mas acredita piamente ser o Paraíso.  "Como o Paraíso é parecido com a minha velha cidade!" Mas, já que é o Paraíso, ele se sente bem ali, e gosta imensamente de tudo. Ele vê sua velha casa, que ele agora imagina ser o Paraíso: " Como se parece com minha velha casa!" Mas, já que se trata do Paraíso, ele a considera muito agradável. Sua esposa e filhos falam com ele: "Como se parecem com minha mulher e meus filhos! Aqui no Paraíso tudo lembra o que foi minha vida" Porém, como é o Paraíso, está tudo bonito. Sua esposa é uma pessoa encantadora , seus filhos são fabulosos - todos cheios de qualidades que ele, em sua vida, jamais suspeitaria que existissem. "Estranho, aqui no Paraíso tudo lembra em detalhes o que era minha vida, e no entanto tudo está completamente diferente!"

Ferrucci, Piero, A Arte da Gentileza - Rio de Janeiro, Elsevier, 2004

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Para cantar um final de amor

Esta noite sonhei com minha mestra e lá estava ela toda sinceridades falando sobre beleza. Aprendi com Elisa a dizer poesia e a perceber nuances de luminosidades nos cantos mais inusitados. Lembrei-me deste poema que é um canto para o final de um amor que lava a alma... Salve Elisa Lucinda!


Safena
Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até ao auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tintas, tijolo
comecem a obra!
Por amor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Peitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou eu de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e ceras
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Sereia seria...

Ela, uma sereia meio encantada, que tinha sido tirada do mar muito cedo. Sabia que não pertencia a este mundo sólido. Ansiava por voltar às profundezas.
Ele, marinheiro de linhagem de marinheiros, navegava desde o ventre da mãe. Corria-lhe o mar salgado nas veias.
Encontraram-se por um acaso do destino numa praça da cidade. Estranharam-se pressentindo uma ligação de outros tempos.
Ela nem precisou cantar e ele já caíra de amores. Precisava dela como das verdes águas.
Ela relutou, ele iria certamente prendê-la num cativeiro cativante...
Amaram-se sem esperanças ou previsões.
Ele, enfim, conseguiu um navio todo seu, casou-se com a princesa, seguiu sonhos de glória.
Ela sofreu um tanto até chegar ao oceano ansiado onde mergulhou e maravilhada se lembrou.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O louro esperto...

As histórias sufis nos trazem ensinamentos que poderíamos levar anos de estudo para  obter. Basta abrir-se e ouvir...






O Mercador e o Louro

Era uma vez um mercador que mantinha um papagaio preso em uma gaiola. Quando estava para ir à Índia, em uma viagem de negócios, ele disse ao pássaro:
- Eu estou indo à sua terra natal. Você tem alguma mensagem pata os seus parentes selvagens?
- Simplesmente diga a eles - disse o papagaio - que estou vivendo aqui em uma gaiola.
Quando o mercador retornou, falou ao papagaio:
- Eu sinto dizer que tão logo encontrei os seus parentes selvagens lá na floresta e os informei de que você estava engaiolado o choque foi muito forte para um deles. Assim que ouviu a notícia,caiu do galho onde estava e não tenho dúvidas de que morreu de tristeza.
Imediatamente, assim que o mercador terminou de falar, o papagaio teve um colapso e caiu inerte no chão de sua gaiola.
Penalizado, o mercador tirou o papagaio da gaiola, colocando-o do lado de fora, no jardim. Então o papagaio, tendo captado a mensagem, levantou-se e voou para fora do alcance do mercador.


Histórias da Tradição Sufi- Rio de Janeiro: Edições Dervish- Instituto Tarika, 1993

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Mais de Afrodite

Há algum tempo eu e a Cris Balieiro iniciamos um diálogo entre as Deusas da Mitologia e as Princesas dos contos de fada. Falávamos das dimensões psicológicas com as princesas e tocávamos respeitosamente o sagrado com os arquétipos das Deusas.Os diálogos começavam entre elas, continuavam conosco e seguiam com os grupos de mulheres. Os encontros eram os mais inusitados e partíamos do princípio que todos os personagens do conto bem como as possibilidades das deusas estavam dentro de nós. Não trabalhávamos com tipologias e sim com "visitações" ou constelações como diria Jung: num determinado momento um aspecto até adormecido pode acordar e tomar a primazia.
Um dos encontros mais produtivos foi o de Afrodite, a deusa dos encontros , conversando com Chitrangada,
 uma princesa do Mahabharata, masculinizada e desengonçada, que se apaixonava pelo heroi e humildemente
suplicava por um milagre à deusa do amor. Como uma mulher tão sem atrativos poderia tocar o coração daquele belo jovem. A Deusa atende e a transforma numa belíssima mulher por apenas um ano. E depois?
O que buscamos no encontro amoroso? O que nos move e comove quando estamos tomados pela Deusa?
Qual a beleza que toca e cria mundos?
Afrodite se mostra muito mais poderosa nas transformações que mobiliza através dos encontros do que quando invocada para achar príncipes encantados. Com Psiquê( e esta é uma outra longa história) é implacável mas faz de uma menina adorada uma mulher digna de um relacionamento profundo com o próprio Amor. Invocá-la exige coragem porque quando ela resolve te transformar não tem para onde correr. Mas vale sempre a pena...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Normas Gerais para a vida dos Lobos por Clarissa Pínkola

Fui criada por minha amada avó que tinha 71 anos, quando assumiu a responsabilidade de cuidar de um bebê de seis meses. Árdua tarefa...Para prevenir complicações construíram um cercado e lá me colocaram. Cercado é jeito de dizer porque era bem fechado e não tinha visão do exterior. Parecia mais um caixão e assim o chamaram. Não, eu não virei vampira ...Lá dentro tinha alguns brinquedos e muitas, muitas revistas: Seleções e Claudia. Dizem que eu adorava olhar as imagens e brincar de ler com as tais publicações. Certo é que saí de lá lendo e fiquei com sequelas. Adoro listas do que e como fazer, bem ao estilo das antigas Seleções. Quando encontrei esta no final do livro de Clarissa Pínkola fiquei encantada e passei a usá-la para me lembrar do que realmente importa...



NORMAS GERAIS PARA A VIDA DOS LOBOS

 1. Coma
 2. Descanse
 3. Perambule nos intervalos
 4. Seja leal
 5. Ame os filhos
 6. Queixe-se ao luar
 7. Apure os ouvidos
 8. Cuide dos ossos
 9. Faça amor
10. Uive sempre


Estés, Clarissa Pínkola - Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem  - Rio de Janeiro, Rocco, 1994

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A Filha do Trapezista

Há algum tempo, minha amiga Lizandra, uma jornalista como poucas, apareceu com uma proposta de juntarmos as forças e criarmos uma Oficina Literária. Adoro desafios e lá fomos nós. Eu a contar histórias, ela usando todos os recursos( e são muitos!!!) de que dispõe para favorecer a escrita criativa. Juntamos algumas queridas e passamos a nos aventurar pelas possibilidades de cada uma. Surpreendente como os encontros favorecem o surgimento de textos tão inesperados, desconhecidos de nós mesmas. Alguns escritos já postei aqui. Alguns ainda estão por vir. Percebo que o espaço do encontro é sempre portal para mim. Brotam palavras, imagens e sensações tão vivas e coloridas. Bom é saber que muitos novos encontros virão...



A Filha Do Trapezista

Fazia sempre questão de andar com as próprias pernas. 
Preferia  caminhar a qualquer outro meio de transporte.
Sentir o chão bem firme debaixo de seus pés. 
Apresentava um medo sólido de alturas.
Temia o voo. 
Seria eternamente lagarta...

sábado, 3 de dezembro de 2011

Unhas vermelhas

 



Naquele vagão há séculos, ele quase beirava o desespero. Ela surgiu abrindo caminho por entre as gentes. Dela bastou ver aqueles dedos compridos, aquelas unhas cor de sangue. Poderia ficar ali pela eternidade...

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Homem e mulher...

Ela vinha de muito longe. Ela vinha de muito perto. Incorpórea visão. Volátil perfume. Misto de sonhos, ilusões, anseios. Pairava sobre si mesma. Nos olhos trazia a impossibilidade de ser, a dor na ferida aberta em seu peito. Escondia-se nas meigas falas e nos velozes pensamentos. Comprazia-se em se fazer rejeitar. Desejava, desejava e desejava. Recebia, porém, alimento para devaneios. Era venerada, admirada, musa de cavaleiros temporãos. Sentia-se menor, limitada, aquém de seu verdadeiro ser.
Ele já estava lá. Conhecia-o há tempos. Belo, desejável. Ela já o havia transformado em matéria de sonhos. Diluía seus olhares. Explicava seus abraços mais apertados:era carinhoso assim mesmo... Fazia sua habitual cara de paisagem.
Chegou, enfim, um dia. O dia em que ele a quis por sobre a névoa. Seu desejo e determinação foram tamanhos que ignorou por completo as tentativas de fuga, as desculpas, os desvios. O momento era chegado: agora ou nunca! Ele a queria e era pra já. Ela ainda tentou se esconder atrás da velha e boa histórias que a consumia, que exauria suas forças e sua alegria. História para boi dormir. Tentou fugir mais uma vez da vida, do ser, de seu corpo que pedia... Ele, bendito seja, não deixou. Seus olhos, suas mãos, não se afastaram dela. Seu respirar, seu transparente e inequívoco desejo.
Encontraram-se por fim, corpo e alma; ação e desejo. Bocas, peles, sexos. Ela, como que em sonho flutuava por sobre a cena, sem acreditar. Era real, enfim acontecera. Ele, nu, magnífico a tocava, cheirava, mordia, lambia, penetrava seus espaços. Era bom! Ah! Era muito bom mesmo! Amaram-se com urgência. Conversaram também. Ele, gentil, lhe contou carinhosamente a história que só se conta às quintas-feiras. Ela sorria feliz contemplando o reflexo de seus corpos. Não havia vergonha, não havia orgulho.
Amaram-se mais uma vez, com calma, com delicadezas. Foi bom! Muito, muito bom! Era momento de ir, de se deixarem partir. Ela, inteira mulher. Ele, todo homem. Guardados um nas reentrâncias do outro, misturados na fantasia que se fez carne. Apaixonados por si mesmos através do encontro. Um. Uma. Viventes. Visitados por Afrodite e Dioniso.

Imagem: Vigeland , Man and Woman

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Criado do Príncipe de Bokhara

Contar histórias, para mim, é uma necessidade. Sempre digo que elas se comportam como entidades, só se manifestam quando querem. Não adianta querer contar esta ou aquela para fazer bonito. A história tem que se mostrar em toda a sua grandeza e beleza indo além da performance do contador. Assim ela toca e faz alma. Esta apareceu hoje por aqui...


O CRIADO DO PRÍNCIPE DE BOKHARA

O Príncipe de Bokhara tinha um criado que, com medo de ser castigado por uma falta que cometera, afastou-se e permaneceu escondido no  Kuhistão, no deserto, durante dez anos. Findo este período, incapaz de suportar por mais tempo a falta de seu senhor e de seu lar, decidiu voltar para Bokhara, ajoelhar-se aos pés do Príncipe de Bokhara e submeter-se a qualquer castigo que este quisesse infligir-lhe. Seus amigos fizeram o possível para dissuadi-lo, afirmando-lhe que a cólera do príncipe ainda não abrandara, e que se aparecesse em Bokhara seria condenado à morte ou atirado na prisão pelo resto da vida.
- Ó conselheiros, calem-se - disse ele - A força do amor que me conduz a Bokhara é mais forte do que seus conselhos de prudência. Quando o amor nos impele para algum lugar toda a sabedoria do m undo é impotente para vencê-lo. Se agradar ao meu senhor matar-me, entregarei minha vida a ele sem pena, já que a separação daquele a quem irei procurar agora é o mesmo que a morte, e a libertação que dela virá será minha eterna felicidade. Voltarei a Bokhara, lançar-me-ei aos pés do meu senhor e direi: " Faze comigo o que quiseres. Não posso mais aguentar tua ausência, e para mim a vida ou a morte em tuas mãos são a mesma coisa".
Coerente com seu pensamento, iniciou a viagem de volta a Bokhara, considerando doces e deliciosos a fadiga e os desconfortos da viagem, porque eram passos que dava em direção ao lar.
Quando chegou a Bokhara, amigos e familiares preveniram-no para que não se deixasse ver, pois o príncipe ainda não esquecera sua ofensa e o castigaria. Porém ele lhes respondeu da mesma forma que respondera a seus conselheiros anteriores: que agora sua vida lhe era completamente indiferente, e que resolvera submeter-se à vontade de seu senhor. Dirigiu-se à corte e arrojou-se aos pés do príncipe, desmaiando.
Vendo o amor que seu criado arrependido sentia por ele, o príncipe sentiu amor igual. Desceu do trono e, com clemência, fê-lo levantar-se do chão e perdoou sua falta. Desse momento em diante ambos viveram em harmonia para sempre.

Histórias da Tradição Sufi- Rio de Janeiro: Edições Dervish- Instituto Tarika, 1993

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Oxum fica pobre por amor a Xangô

Há alguns anos fiz um curso com Ronilda Yakemi Ribeiro sobre Mitologia Iorubá. Fiquei encantada com a riqueza das histórias e com uma cosmogonia muito bem elaborada. Claramente fiquei fascinada pela iabás, as orixás femininas. Outro dia alguém me perguntou porque tinha uma flagrante predileção pelo pequeno conto a seguir e eu respondi que para mim, aprender a amar profundamente inclui despir-se dos artifícios da conquista e dos jogos de poder. Assim aprendeu Oxum...










Oxum fica pobre por amor a Xangô

Oxum era conhecida como a amante ardorosa.
Tinha um corpo belo, de formas finas. 
Sua cintura deixava-se abraçar por um único braço.
Por muitas noites Oxum teve em seu leito amantes
aos quais propiciava momentos de raro prazer.
Oxum teve muitos amores,
de quem ganhou presentes preciosíssimos.
Oxum era rica. Tinha joias, ouro, prata,
vestidos maravilhosos, batas que causavam inveja,
e mais, pentes de marfim, espelhos de madrepérola
e tantos berloques e panos-da-costa.


Um dia chegou à aldeia um jovem tocador de tambor.
Era Xangô, um belo homem,
que desde logo atraiu o desejo de Oxum.
Inescrupulosamente, ofereceu-se a ele.
mas foi prontamente rejeitada.
Usando de todos os artifícios,
Oxum foi se aproximando de Xangô,
até que um dia ele a tomou numa calorosa relação sexual.
Mesmo assim Xangô não deixou de humilhar
e desdenhar a linda jovem.


Tempos depois,
a fama e a fortuna de Xangô lhe fugiram das mãos
e ele se viu empobrecido e esquecido
ainda que continuasse a ser excelente alabê.
Envergonhado, ele fugiu dali.
Foi viver longe do lugar e longe do som dos atabaques.
Mas continuava o glutão de sempre,
a viver com conforto e prazeres.
Oxum seguiu sendo sua amante e o consolou,
sacrificando por ele tudo o que tinha.
De tudo de seu dispôs Oxum, para o conforto de Xangô.
Primeiro as joias,depois os vestidos, as batas,
depois os pentes, os espelhos, de tudo foi se desfazendo Oxum.
Restou-lhe nada mais que seu vestido branco.
De tudo de seu desfez-se Oxum pelo amor de Xangô.
Restou a Oxum apenas um vestido branco
Que era tudo o que tinha para vestir.
Mas todo dia no rio lavava Oxum a veste branca.
De tanto lavar a única peça que lhe restara, 
a roupa branca tornou-se amarela.
Desde esse dia, Xangô amou Oxum.

Prandi, Reginaldo- Mitologia do Orixás- São Paulo, Companhia da Letras, 2001.

Imagem: Sá Cortes

Nasrudin e seu varal

Mais uma história engraçada de nosso querido Nasrudin....


O VARAL

Um vizinho bateu à porta do Nasrudin e pediu:

- Nasrudin, você me empresta seu varal? O de lá de casa quebrou.

- Um momento, disse Nasrudin - vou perguntar à minha mulher.

Momentos depois Nasrudin voltou e disse para o vizinho:

- Desculpe vizinho, mas não vou poder emprestar o varal. Minha mulher está secando farinha nele.

O vizinho, surpreso, exclamou:

- Mas Nasrudin, secando farinha no varal??!!

E Nasrudin respondeu:

É... quando não se quer emprestar o varal, até farinha se seca nele...

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A janela de Adélia

Poesia sempre me comove, me transpassa, me faz ir mais longe e bem perto... Poesia em tudo até na tramela de uma janela. Adélia faz assim: trevinhos, passarinhos, peixes para limpar, excrementos... Pretextos para saltar para este mundo transfigurado da poesia.


Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira-à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pre fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento de Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minha intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

Prado, Adélia - Poesia Reunida - São Paulo, Siciliano, 1991

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A joia preciosa

Ontem eu e minha querida amiga, Bia del Picchia, fomos a um Encontro aberto com o Sheik Sufi Ismail Çimen, onde ele falou a respeito do sufismo, executou músicas místicas sufis e conduziu um dhiker, repetição dos nomes de Deus. Experiência interessante e tocante para mim, que há anos conto histórias desta tradição. Histórias que trazem ensinamentos de um caminho sagrado de busca do encontro com o Sublime. Ouvir este homem tão doce falar de assuntos profundos com tanta simplicidade me fez lembrar desta história em especial, cuja mensagem traz à memória outro mestre que sempre diz: " Prabhu Ap Jago!" Acordem!

A Joia preciosa

Num longínquo reino de perfeição, um rei poderoso e justo tinha uma esposa e duas crianças maravilhosas, um filho e uma filha.
E todos viviam em grande felicidade.
Um dia o pai chamou os filhos para junto de si e lhes disse:
- Chegou para vocês, como chega para todos, o momento em que deverão partir em direção a um outro mundo, a uma distância infinita. Lá vocês irão procurar uma joia preciosa, e assim que a encontrarem voltarão, trazendo-a com vocês.
 Cercados de grande segredo, os viajantes foram levados a uma nova e estranha terra onde quase todos os habitantes viviam na obscuridade e na noite de seu sono.
 O choque foi tão grande que o irmão e a irmã se separaram, perderam progressivamente o contato entre eles,e logo esqueceram tudo sobre sua origem.
Como os demais habitantes daquele país, eles iam de um lado para o outro, dormindo profundamente.
De tempos em tempos, sonolentos, viam sombras, miragens distantes do país de onde tinham vindo, ou então sonhavam com uma joia.
Mas na condição em que se encontravam eram incapazes de lembra-se da realidade, e pouco a pouco foram tomando os sonhos por ilusões.
Quando o rei tomou conhecimento disso, considerou a difícil situação em que seus filhos se encontravam e decidiu mandar um servidor de confiança para ajudá-los.
Este era um sábio e levou-lhes uma mensagem:
"Lembrem-se da missão de vocês; acordem do sono em que submergiram e  fiquem unidos."
Logo que ouviram a mensagem as duas crianças acordaram.
Graças à ajuda do guia enviado para libertá-las, elas puderam vencer os grandes perigos que ainda as separavam da joia preciosa.
Quando a encontraram as crianças voltaram para o reino da luz.
E lá foram mais felizes do que antes, e para sempre.


Histórias da Tradição Sufi- Rio de Janeiro: Edições Dervish- Instituto Tarika, 1993

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

E se...

E se naquela noite de festa fria de festa junina, ela tivesse perdido o pudor e o medo e  confessado que o amava...
E se no dia em que resvalou para a morte, ele pedisse a Deus que gostaria de revê-la e dizer tudo o que sentira por tanto tempo ...
E se Deus resolvesse atender este pedido e inesperadamente se esbarrassem distraídos a contemplar o verde turvo do amplo rio...
E se, como ele num arrombo de desejo propôs, fugissem para Londres e se amassem até suas forças se esgotarem, mitigando anos de fome de carne...
E se hoje neste portal entreaberto resolvessem que é absolutamente imprescindível dar espaço à loucura...
E se...
Responderia ele: Se minha avó usasse rodas seria ela um triciclo!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Gota d'água

Estavam ali, mais uma vez, sentados. Comiam quase em silêncio. Silêncio que lentamente se instalara entre eles. De quando em quando ele passava a discorrer sobre os assuntos de sempre, assuntos dele. Inesperadamente ela ergueu os olhos cansados do prato, olhou fixamente para ele e disparou comovida:  "Existe coisa mais triste do que um grande amor agonizando?" Ele, sem pressa alguma, olhou para as mesas vazias ao redor como que se procurasse o motivo da pergunta. 
Fitando, enfim, o infinito começou a tecer suas velhas teorias sobre relacionamentos: sobre como as coisas pioraram desde que as mulheres abandonaram sua essência, sobre a inequívoca necessidade masculina de uma poligamia consentida... Falou, falou e falou. Ela, apenas ouvia, soltando suspiros aqui e ali, exaurida até os ossos com aquela lenga lenga. Uma coisa, porém, era certa: ele sempre se mostrara assim, desde aquele longínquo e luminoso dia de outono em que se conheceram. Era, sobretudo, um teórico, cheio de teorias em que acreditava,mas nem se dava conta que não vivia em absoluto.
Ela de nada se arrependia:  muito havia aprendido com este amor que sentira.  Aquela longa explanação dele, entretanto, acabou por desligar os aparelhos de seu amor moribundo. Percebeu que não mais haveria sobressaltos, expectativas, nem desilusões. Apenas uma infinita e tediosa linha de mesmices. Chorou uma lágrima solitária pelo fim, levantou-se e partiu sem nenhuma necessidade de olhar pra trás.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O rabino sábio

A busca espiritual não é uma empreitada das mais tranquilas. Conhecimentos adquiridos, em qualquer tradição, apenas intelectualmente podem transformar-se em mero instrumento de poder. Segue uma pequenina história que ilustra bem este equívoco.



Um jovem acabara de completar seu treinamento espiritual e estava ansioso para tornar-se mestre. Mudou-se para uma nova cidade, onde tentou ensinar. Mas ninguém aparecia para ouvi-lo. O único movimento espiritual da cidade parecia ser os muitos seguidores de um rabino de um rabino sábio e bem conhecido. Frustrado, o jovem concebeu um plano para desmoralizar o velho mestre e obter alunos para si.  Capturou um pequeno pássaro e foi até onde o mestre ensinava, rodeado de seus discípulos. Segurando o pequeno pássaro na mão, dirigiu-se diretamente ao mestre.
- Se  és tão sábio, diz-me agora: este pássaro em minhas mão está vivo ou morto?
Seu plano era o seguinte: se o mestre dissesse que o pássaro estava morto, ele abriria as mãos, o pássaro sairia voando, o erro do mestre ficaria patente e os alunos deixariam de procurá-lo; se o mestre dissesse que o pássaro estava vivo, ele rapidamente o esmagaria nas mãos e, abrindo-as, diria: " Veja, o pássaro está morto". Novamente o mestre se revelaria equivocado e o jovem obteria seus alunos.
O jovem, confiante em si, sentou-se diante do mestre exigindo uma resposta.
- Se és tão sábio, diz-me agora: este pássaro em minhas mão está vivo ou morto?
O mestre olhou para ele com grande compaixão e disse apenas:
- Realmente, meu amigo, isto depende de você.


Histórias da alma; Histórias do coração: parábolas e narrativas do caminho espiritual e na contemporaneidade. São Paulo, Pioneira, 1994.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Elisa Lucinda e seu " Eis amor"

Por vezes, nos deparamos com pessoas completas, daquelas que cantam, dançam e sapateiam...Tive a honra de ter como mestra de como dizer poesia, esta mulher majestosa chamada Elisa Lucinda. Seus olhos verdes, naquela belíssima negritude, fascinam e sua voz cadenciada hipnotiza. Fiz vários cursos e a poesia de Elisa me traduziu, transportou e transtornou. Segue um poema de seu livro, "A Fúria da Beleza".






 Eis amor

Ex- amor, respeite os nossos segredos,
respeite os nossos enredos,
os versos que eu te dei,
o amor lindo que vivemos, ex-amor.


Eis amor: os caminhos, os teus rios,
nossas diferenças,
nossas perdas, nossas recompensas.
Ninguém sabe para onde vamos,
nem tampouco há alguma sentença.


Escrevo estes versos por respeito
aos versos que me deste, ex-amor.
Te agradeço, grande inspirador,
ainda que sejam estes
os últimos versos que eu te dou.
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