quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma história de amor e morte


Contar histórias pode ser uma espécie de sacerdócio. O contador precisa estar sempre aberto para encontrar novas histórias e disponibilizar sua alma para elas. Em algumas ocasiões podemos ser tão profundamente tocados por uma, que quase não conseguimos contá-la tamanha a emoção que nos evoca. Ao menos isto acontece bastante comigo...
Há tempos quando aquele meu amigo mestre e contador me indicou a Clarissa Pínkola, disse que eu iria ficar apaixonada pelo conto do povo inuit que se pode ler no capítulo cinco do livro cujo nome já diz muito: " Quando o coração é um caçador solitário". A autora fala de um amor que não é aquele que vemos nas comédias românticas que moldaram nossos desejos superficiais, mas daquele necessário para sobrevivência da própria alma. Sobretudo para se dedicar a uma aventura como esta faz-se necessário um coração cheio de coragem para enfrentar a Morte das ilusões em suas múltiplas facetas.
Creio que esta é uma história que precisamos ouvir e lembrar sempre. Renova nosso anseio pelo encontro profundo com o Outro e sobretudo aponta um caminho para que, deixando as necessidades infantis para trás, busquemos aprender a amar como adultos que podemos ser.


"Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em que! - nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá em baixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado a superfície e caia suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos. - Agh! - gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte.

- Agh! - berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção
da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia.Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás.Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.


- Aaagggggghhhh! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saia correndo agarrado a vara de pescar.E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso a linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou.Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.

O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um que de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.


- Oh, na, na, na. - Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.- Oh, na, na, na. - Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eramiguaizinhos aos de um ser humano.


Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais umfoguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá em baixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando.Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima a luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,e pôs a boca junto a lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu,bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!

Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.

- Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!- E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne.Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água.As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem."

E foram nutridos para sempre...

( Foto de Isabel Bernardo, 2007)


quarta-feira, 30 de março de 2011

Ártemis, a Deusa livre



Zeus, certo dia, encantou-se por uma filha de Titãs de beleza ímpar cujo nome era Leto. Como a ninguém era dado fugir ao assédio do deus, ela acabou engravidando de gêmeos, o que provocou a ira de sua esposa, Hera. A deusa proibiu Leto de dar à luz em terra firme, no continente, em qualquer ilha ou em qualquer lugar debaixo do Sol. Algumas versões contam que ela se transformou numa loba e passou a procurar um lugar onde pudesse ter seus filhos. Chegou, enfim, a uma ilha flutuante chamada Delos. Ali nasceu primeiramente quase sem nenhuma dor, Ártemis. Como se a filha fosse uma manifestação da essência da mãe. As dores do parto de Apolo entretanto duraram nove dias e nove noites. A menina assistiu à mãe nos trabalhos, uma vez que Hera tinha retido Ilítia, sua filha e deusa dos partos, junto a si.
Cresceu muito amada pelo pai que lhe concedeu seis pedidos: permanecer virgem; ser chamada por vários nomes para distinguí-la de seu irmão,Apolo; ser a doadora da Luz;portar um arco e flecha e usar uma saia curta para que pudesse correr pelas montanhas em liberdade, ter como seu "coro", nove filhas de Oceano, todas com nove anos de idade e como damas de companhia vinte ninfas que iriam cuidar de seus cães e arco quando descansasse. Não tinha nenhuma cidade que lhe era dedicada, mas era a guardiã das montanhas e florestas e a ajudadora das mulheres na hora do parto.
Nasce, criança sagrada, dentro de uma disputa entre deusas, mas cria para si um ambiente feminino de companheirismo e cuidados. Pode nos falar da profunda amizade que nutre a alma das mulheres, de um convívio produtivo e necessário cheio de trocas e possibilidades. Desvela também a busca pelo recolhimento quase que monástico em meio a natureza. Renova-se na corrida com seus animais. Talvez uma das patronas da Mulher Selvagem...

terça-feira, 29 de março de 2011

Anseio


Um anjo surgiu ao meu lado
Sussurrei ao seu ouvido:
Há tanto por ver
Tantos sóis por se pôr,
Tantas manhãs luminosas,
Tantos cheiros distantes,
Tantos jardins abandonados,
Tantas paisagens inexploradas,
Tanta paineira toda branca,
Tanto mar salgado,
Tanta música por se ouvir,
Tanta inevitabilidade,
E eu quero tanto...

segunda-feira, 28 de março de 2011

A menininha das nuvens


Era tão pequenininha e sua tia a ensinou a escrever sua primeira palavra: NUVEM. Assim mesmo com grandes letras de jornal. Ela imediatamente se encantou. Não pela palavra, mas pela possibilidade do desenho. Passou a preencher qualquer papel que lhe caía nas mãos com aqueles cinco sinais e com o desenho correspondente. Por vezes as nuvens fugiam para paredes e portas que encontrava no caminho.
Cresceu falante e desenhante...Tudo que pudesse ser nomeado, deveria ser imediatamente desenhado. Seus preferidos eram as mulheres, suas roupas e ornamentos e os gatos. Quando teve que procurar um ofício ficou um tanto indecisa se queria projetar grandes construções ou todos os belos objetos que criaria. Encontrou um grande amigo que lhe seria companheiro de muitas horas; tudo que pensasse em desenhar ele tinha ferramentas para fazê-lo e ainda tinha técnicas para fazer seus esboços se moverem.
Resolveu seguir um caminho em que pudesse projetar mundos, como fizera tantas vezes quando criança. Da primeira linha usada para traçar suas nuvens surgiram ilustrações de bichos e gentes em livros infantis, fachadas de casas, móveis e muita coisa mais...
Com a cabeça eternamente tomada por ideias e imagens segue feliz, envolvida com seus desenhos. Diverte-se e ainda por cima, ganha a vida assim. A cabeça parece ter ficado a passear pelos ares mas os pés estão muito bem firmados no chão...

domingo, 27 de março de 2011

Eu e Fernando, o Pessoa


Tive um excelente professor de Literatura quando estava no cursinho. Como só professores de cursinho conseguem ser. Fazem cenas mirabolantes, cantam musiquinhas, tudo para nos prender a atenção e nos fazer memorizar coisas que esquecemos assim que prestamos vestibular. Aquele, entretanto, fez sobressair meu amor pelos autores portugueses. Os únicos que conseguem nomear este sentimento tão peculiar que é a saudade. Conseguem captar algo que sempre senti que é saudades de coisas que nunca aconteceram, da terceira perna que nunca tive...
Camões e Pessoa passaram a ser meus companheiros mais amados. Aprendi a analisar sonetos e a identificar heterônimos. O importante mesmo é que estes poetas ajudaram a tecer minhas paisagens internas e me acompanharam vida a fora em momentos de alegria e de profundo pesar. Há poemas que fazem parte de minha estrutura psíquica e os falo como resposta às perguntas dificeis que a vida me faz.
Pessoa e suas múltiplas pessoas sempre contemplam facetas minhas que chegam a ser antagônicas. Posso me reconhecer em Caieiro:



O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar.
..

Este de Fernando Pessoa, ele mesmo, parece me descrever:

Tenho tanto sentimento 
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar



Percebo que minha alma tem muito de Portugal em sua constituição...



sábado, 26 de março de 2011

Elsa e Fred


Ela, uma senhora não tão responsável, que como quase todas as mulheres mente a idade. Ele, um viúvo circunspecto e meio hipocondríaco, que venera a foto de sua esposa morta. Encontram-se em circunstâncias antagônicas. Ela havia batido no carro de sua filha e ameaçado o pequeno neto de morte se contasse o ocorrido. Com muito bom humor.
Assim começa um dos filmes mais tocantes que já vi. "Elsa e Fred - Um amor de Paixão". Numa idade em que esperamos que o amor não tenha lugar, em meio à doenças reais e imaginárias, nossa Elsa, intensa e atrevida, assedia o seu vizinho viúvo até que aos poucos ele se contagia pela vivacidade dela. Alfredo, um senhor tão correto, passa a ter atitudes estranhas aos olhos da filha e até aos seus próprios. A paixão vai chegando sorrateira e o ápice do filme é a viagem à Roma para reviverem as cenas da Fontana de Trevi entre Anita Ekberg, com que Elsa dizia parecer em sua juventude, e Marcello Mastroianni. Até um gato ele tem que conseguir para compor o cenário.
Belo e repassado de poesia, este filme sempre me lembra que deixar-se tocar pela vida e ser apaixonado por ela não necessariamente é coisa exclusiva para jovens...

sexta-feira, 25 de março de 2011

Passeio no parque


Caminhavam juntos de mãos dadas pelo parque. Dia comum entre tantos outros. Ele, do nada, lhe perguntou sobre algo do passado. Os olhos dela encheram-se de lágrimas e confessou nunca ter esquecido seu primeiro amor. Atônito, diante da verdade que pressentia por entre os suspiros, ele descontrolou-se. Nunca havia esperado isto da mulher que há tanto amava. E, afinal, quem era o tal sujeito perdido no tempo.Ela confundia-se toda ao explicar. Era um que havia avistado numa festa na adolescência... Namoraram? Não! Beijaram-se? Não! Apenas dançaram coladinhos uma daquelas baladas antigas. Mas ela tinha se enamorado dele perdidamente. Como? Não sabia dizer...
Ele, um tanto aliviado, continuou seu caminho com ela, certo de que tinha como rival o sonho.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma história para se pensar...






Quinta-feira, como sabemos é dia de história. Para que servem elas? Em todas as tradições as histórias são contadas para reflexão e transformação de quem conta e de quem as ouve. Nas psicoterapias podem ser um poderoso aliado, uma vez que todo o processo é tecido através das histórias contadas e recontadas pelo paciente. O psicoterapeuta pode trazer aqui e ali ampliações e clarificações através de símbolos, mitos e contos. Encontrei há tempos um livro de Nossrat Peseschkian que fala exatamente das possibilidades das histórias como ferramentas no trabalho terapêutico. São contos orientais milenares que contém ensinamentos sábios e profundos.
Aqui vai a minha predileta:

O misticismo persa conta a respeito de um andarilho que caminhava penosamente ao longo de uma estrada que parecia interminavelmente longa. Ele estava oprimido por fardos de todo tipo. Um pesado saco de areia pendurado nas costas; uma grossa mangueira cheia de água enrolada em seu corpo. Em sua mão direita, levava uma pedra de formato irregular, na esquerda, um matacão. Em volta do pescoço, uma antiga pedra de moinho balançava amarrada por uma corda gasta. Correntes enferrujadas com as quais arrastava grandes pesos pela areia empoeirada estavam enroladas em seus tornozelos. Sobre a cabeça, o homem equilibrava uma abóbora meio podre. A cada passo que dava as correntes retiniam.Com queixumes e gemidos ele avançava passo a passo, maldizendo sua má sorte e a fadiga que o atormentavam. Um fazendeiro encontrou-se com ele no caminho, sob o escaldante calor do meio dia> perguntou o fazendeiro: " Ó. exausto andarilho, porque carregas contigo este matacão?". " Que terrível pateta," respondeu o andarilho, "mas eu não havia reparado nele antes!" Dito isso, jogou fora a pedra e sentiu-se muito mais leve.
Novamente, depois de ter percorrido um longo trecho da estrada, outro fazendeiro encontrou-se com ele e perguntou: "Dize-me, cansado viajante, por que te atormentas com uma abóbora quase podre na cabeça e por que arrastas atrás de ti aquelas pesadas bolas de ferro presas por guilhões?".
O andarilho contestou: " Estou muito grato por tu me teres feito perceber. Eu não me havia dado conta do que estava fazendo a mim mesmo." Assim, retirou as correntes e arrebentou a abóbora na valeta que margeava a estrada.Outra vez , sentiu-se aliviado. Porém, quanto mais caminhava, mais voltava a sofrer.
Outro fazendeiro, saindo do campo, observou-o com espanto e disse: "Ó, meu bom homem! Tu carregas areia no saco, mas o que teus olhos podem ver até o horizonte é mais areia do que tu poderias jamais carregar. E essa tua enorme mangueira cheia d'água - parece que desejas atravessar o deserto de Kanvir! A todo momento encontrarás correndo ao teu lado uma vertente límpida que te acompanhará por um longo percurso". Ao escutar isso, o viajante rompeu a mangueira e derramou sua água salobra sobre o caminho. Depois, cobriu um buraco com a areia de sua mochila. então permaneceu ali, pensativo, Enquanto observava o sol poente. Os últimos raios emitiam sobre ele sua luz. Ele então lançou os olhos sobre si próprio e, reparando na pesada pedra de moinho pendurada em seu pescoço, subitamente percebeu ser ela que o fazia andar assim tão curvado. Desvencilhou-se da pedra e a jogou tão longe quanto pôde dentro do rio. Liberto de suas cargas, perambulou adiante, no fresco entardecer, em busca de alojamento.

Peseschkian, Nossrat - " O mercador e o papagaio: Histórias orientais como ferramenta em psicoterapia" Campinas, SP; Papirus, 1992

quarta-feira, 23 de março de 2011

Bast, a protetora dos gatos


Sempre que manifesto meu grande amor pelos felinos, em especial pelos gatos por uma simples questão de tamanho, ouço uma série de comentários dizendo como estes bichos são arredios e não muito carinhosos. Muitas vezes me contam a velha piada de que se você alimentar um cão ele lhe verá como um deus e o seguirá, ao passo que ao alimentar um gato, ele terá a confirmação de que ele sim é um deus. Quanto à falta de carinho dos gatos pelos donos posso dizer que é intriga da oposição. Já sobre a divindade...
Há alguns milênios quando a civilização egípcia floresceu eles já tinham o conhecimento de que ratos poderiam destruir as reservas de alimento e transmitir doenças. Para protegê-los eles tinham uma divindade, a filha do deus Rá, o Sol. Seu nome era Bast, uma bela mulher com cabeça de gato. Tornou-se uma das deusas mais cultuada no Egito, sendo suplantada apenas por Ísis.
Conhecida como poderosa e selvagem protegia os animais que a representavam, bem como aqueles que os amavam. Sua ira porém deveria ser evitada pois era vista como a vingança de seu pai.
Era a deusa do Sol nascente, da iluminação e da verdade. Também vista como a protetora dos lares e doadora da fertilidade e abundância. Uma das formas de venerá-la era reverenciar seus animais totêmicos e portanto os gatos eram literalmente tratados como deuses. Talvez seja esta a memória que carreguem como espécie.Pena que Bast por vezes não castigue como antigamente aqueles que lhes causam mal...






terça-feira, 22 de março de 2011

Canção de Morgana


Há que se buscar a canção
Que ilumine os recantos mais escondidos
Que abra caminhos nas brumas
Que desperte as vísceras e
Acorde as serpentes

segunda-feira, 21 de março de 2011

Quando Perséfone visita a Bela Adormecida


DIÁLOGOS FEMININOS
" a grande e interminável conversa de mulheres sustenta o mundo em sua órbita...se não se falassem as mulheres umas às outras, os homens já teriam perdido o sentido da casa e do planeta"
José Saramago
Retomando nossa jornada nos Diálogos Femininos decidimos revisitar algumas das deusas e princesas que trazem à luz o cerne daquilo que acreditamos necessário para mudar o mundo. O nosso mundo.
Através da troca de histórias e experiências buscamos traçar juntas um mapa para que ampliemos nossas possibilidades de compreensão e consciência de uma vida mais plena. O primeiro dos encontros será:

Quando Perséfone visita a Bela Adormecida

Uma deusa sombria encontra uma jovem princesa. Parecem conversar no mundo dos sonhos. Mítico e simbólico. Em que medida esta conversa pode afetar nossas vidas e transformá-las? O que Perséfone e as duas Belas Adormecidas (são duas!!!) tem a nos dizer hoje, mulheres desse século XXI?
Esse Encontro se dará no dia 16 de abril das 9:30 às 13:30.
Local: Rua Delfina, 74 - Vila Madalena
Custo: R$ 120,00
Maiores informações - 3082 6394/8382 6222 ou pelo email
É NECESSÁRIO CONFIRMAR PRESENÇA ATÉ O DIA 13 DE ABRIL

COORDENADORAS
Cassia Simone: psicoterapeuta de orientação junguiana, contadora de hisstórias, coordenadora de círculo de mulheres e estudiosa de mitologia e questões do feminino
Cris Balieiro: psicoterapeuta de orientação junguiana, coordenadora de círculo de mulheres e estudiosa de mitologia e questões do feminino e autora do livro O FEMININO E O SAGRADO - Mulheres na Jornada do Herói (Edit. Ágora, 2010)

E apareceu um sapo...


Existe um personagem sorrateiro que do nada salta para dentro das histórias: o sapo. Criatura um tanto repelente e gosmenta que provoca sustos e comoções. Creio que é difícil ficar indiferente. Para a mãe da Bela Adormecida surge da banheira para anunciar o nascimento da filha tão esperada. Pode ser um príncipe enfeitiçado que precisa de beijo para retornar a forma...Pode aparecer escondidinho e só a observar com seus grandes olhos..
A simbologia deste animal é extensa e as interpretações múltiplas. Dizem que é o animal da Lua, dizem que é sinal de fertilidade, dizem que representam a morte e a ressurreição. Eu, particularmente gosto de ressaltar o aspecto "melequento" da coisa. O lado não antisséptico da vida e das relações. Sempre que nos deparamos com um sapo na vida temos um certo "nojinho".
A cada vez que entramos em alguma relação temos grandes expectativas a respeito dela. Queremos que tudo seja apenas bom e satisfaça nossas necessidades. Não conseguimos lidar com as imperfeições do outro, qualquer que seja este outro, e também não toleramos nossa falhas e dificuldades. A vida não é antisséptica, não é politicamente correta. É o que é. Cheia de pequenas e grandes sujeiras.
Se refletirmos nas eternas reclamações femininas a respeito dos príncipes que viraram sapos é só lembrar o que esperamos minimamente de um príncipe. Que ele seja totalmente dedicado a nós como nem nossa mães foram quando éramos bebês...Isto só pode acabar mal. As frustrações e decepções chegarão logo. Beijar um sapo é aceitar todas as imperfeições que as relações nos trazem e não, o que tentamos vida afora, transformar as pessoas com quem nos relacionamos para que encaixem nos nossos modelos de perfeição.
Tarefa difícil conviver com os sapos sem entretanto partir para o outro oposto e passar a engolir todos como se tivéssemos que aceitar tudo. Eterna busca de retirar as projeções e desejos infantis e a partir daí começar a compreender e acessar os anseios profundos da alma.
Não há como fugir, neste exato momento um sapo pode estar a te espreitar...


domingo, 20 de março de 2011

Clarissa Pínkola e seu fiel jardineiro


Outro dia conversando sobre as coisas que mais me trazem prazer à existência mencionei a leitura. Alguns me olharam com certa desconfiança. Minha velha avó tinha 71 anos quando nasci e portanto nenhuma capacidade de correr atrás de um bebê cheio de vitalidade e ansioso para explorar cada canto de seu mundo. Resolveu o problema me colocando num "caixão". Deixem-me explicar: acolchoaram uma grande caixa de madeira e lá me colocaram. Para me distrair, além dos brinquedinhos comuns a todas as crianças me deram revistas da época e muitos livrinhos. Saí de lá lendo e nunca mais parei.Lembro-me de que reclamavam, e ainda o fazem, de que ao ler me transporto para dentro do livro e de nada mais preciso. Favorece intensamente meu autismo brando de quem ama passear pelas paisagens internas trazidas pelos escritores e poetas. Trato os livros como pessoas queridas que me acompanham na caminhada. Alguns li várias vezes, outros me encantam tanto que vou saboreando bem devagar para que não acabem nunca...Há alguns anos encontrei um, pequenininho e despretensioso da Clarissa Pínkola. " O jardineiro que tinha fé". Com a prosa poética de sempre ela narra várias histórias entremeadas, sendo o eixo principal a jornada de um tio que amava as florestas. Comovente por demais. a cada vez que eu dei este livro de presente percebia que as pessoas não tinham a dimensão do que estava por vir. Depois vinham os agradecimentos pela beleza contida naquelas poucas e simples páginas.Clarissa tem o poder de tocar a alma e sem pieguice trazer à tona o melhor do humano.

"O que é que não pode morrer nunca? É aquela força de fé que nasce dentro de nós, que é maior do que nós, que chama as novas sementes para os lugares áridos, maltratados, abertos, para que possamos nos ressemear. É essa força na sua insistência, na sua lealdade a nós, no seu amor por nós, nos seus meios, na maioria das vezes, misteriosos, que é maior, muito mais majestosa e muito mais antiga do que qualquer outra jamais conhecida"."Estou certa de que, enquanto estivermos aos cuidados dessa força de fé, aquilo que pareceu morto não estará morto, aquilo que pareceu perdido não estará mais perdido, aquilo que alguns alegaram ser impossível tornou-se nitidamente possível, e a terra que está sem cultivo está apenas descansando - à espera de que a semente venturosa chegue com o vento, com todas as bençãos de Deus. E ela chegará."

sexta-feira, 18 de março de 2011

Quando Afrodite nos visita...


Misteriosos são os caminhos de Afrodite...Quem saberá dizer o instante exato em que a seta de Cupido nos atingiu?

Quem poderá explicar o arrebatamento que nos acomete ao ouvir a voz do ser amado? A comoção que nos toma ao contemplar seu rosto tão amado? A urgência de um corpo pelo outro? A dependência química que se instala?
A paixão tem o poder de a tudo tirar do lugar. Transtorna a ordem. Abre caminhos para as profundas águas de nossos oceanos interiores. Emoções tumultuadas são trazidas à superfície. Conhecemos nossa mais pura luz e nossa mais escura sombra. Por sua natureza transformadora de mundos traz uma dor intrínseca, um medo de Ícaro de despencar das alturas.
Maravilhosa visitação! Quem dela pode ou quer escapar?

quinta-feira, 17 de março de 2011

Os três cabelos de ouro


As histórias parecem ter vida própria e todo contador tem suas preferidas. Eu, particularmente, gosto daquelas que acabam com um "Ah" de surpresa e assombro no final. Abrem a possibilidade do salto para o transcendente. A de hoje encontrei na "bíblia" da Clarissa Pínkola. Ela produz um efeito meio estranho de ir como uma onda que aquece dos pés à cabeça. Poderosa e curativa...

Os três cabelos de ouro


Uma vez, numa noite escuríssima e trevosa, o tipo de noite em que a terra fica negra, as árvores parecem mãos retorcidas e 0 céu é de um azul-escuro de meia-noite, um velho vinha cambaleando pela floresta, meio às cegas devido aos galhos das árvores. Os ramos arranhavam seu rosto, e ele trazia um pequeno lampião numa das mãos. A vela dentro do lampião tinha uma chama cada vez mais baixa. O homem tinha os cabelos amarelos e compridos, dentes amarelos e rachados e unhas amarelas e recurvas. Ele andava todo dobrado, e suas costas eram arredondadas como um saco de farinha. Sua pele era tão vincada que caía em folhos do seu queixo, das axilas e dos quadris.

Ele se apoiava numa árvore e se forçava a avançar; depois se agarrava numa outra para avançar mais um pouco. E assim, remando desse jeito e respirando com dificuldade ele ia atravessando a floresta.

Cada osso nos seus pés ardia como fogo. As corujas nas árvores piavam acompanhando o gemido das suas articulações à medida que ele seguia pelas trevas.

Muito ao longe, tremeluzia uma luzinha, um chalé, um fogo, um lar, um local de descanso; e ele se esforçava na direção daquela luz. No exato instante em que chegou à porta, ele estava tão cansado, tão exausto, que a pequena chama no seu lampião seapagou e o velho caiu porta adentro desmaiado.

Dentro da casa, uma velha estava sentada diante de uma bela fogueira e ela se apressou a chegar até ele, segurou-o nos braços e o levou mais para perto do fogo. Ela o abraçou como' uma mãe abraça o filho. Ela se sentou na cadeira de balanço e o embalou. E ali ficaram os dois, o pobre e frágil velhinho, apenas um saco de ossos, e velha forte que o embalava.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. Ela o embalou a noite inteira e, quando ainda não havia amanhecido mas estava quase chegando a hora, ele estava extremamente remoçado. Ele era agora um belo rapaz, de cabelos dourados e membros longos e fortes. Mas ela continuava a embalá-lo.

— Pronto, pronto. Calma, calma. Pronto, pronto. E quando a manhã foi se aproximando cada vez mais, o rapaz foi se transformando numa linda criancinha com cabelos dourados trançados como palha de milho.

No momento exato do raiar do dia, a velha arrancou bem rápido três fios da linda cabeça da criança e os jogou nos ladrilhos. Eles fizeram um barulhinho.

Tiiiiiing! Tiiiiiiing! Tiiiiiiiiing!

E a criancinha nos seus braços desceu do seu colo e saiu correndo para a porta.

Voltando o rosto por um instante para a velha, o menino deu um sorriso

deslumbrante, virou-se e saiu voando para o céu para se tornar o brilhante sol da manhã.


quarta-feira, 16 de março de 2011

A filha do Pai


Athena, foi a deusa que nasceu de dentro da cabeça de seu pai, o grande Zeus. O senhor do Olimpo teve uma dor de cabeça tão insuportável que pediu a Hefesto que a abrisse com uma machadada. Lá de dentro saltou já adulta, armada com uma lança e dando um grito de guerra. Passou a ser considerada a filha do Pai, a única que podia até usar seus raios.
Da mãe parecia não ter registro algum, mas o certo é que seu pai antes de se casar com Hera teve uma união com Métis, a mais sábia dos imortais. Quando ela engravidou, houve uma profecia que dizia que a deusa daria à luz dois filhos: uma menina muito forte, sábia e guerreira e um segundo filho, que por seu coração amoroso suplantaria em muito o poder do Pai, inaugurando uma era de paz para a humanidade.
Zeus, para não correr riscos, tratou logo de criar um estratagema e engolir sua esposa grávida. Ele que escapou por pouco das entranhas de Cronos, seu pai. Resolvido o problema lhe sobreveio a tal dor de cabeça. Nascida Athena ficou conhecida como tendo sido gerada apenas pelo Pai. Não teve mãe, não teve infância, não teve relacionamentos amorosos. Era uma estrategista brilhante que protegia seus guerreiros escolhidos. Figura determinante na famosa Guerra de Tróia.
Tenho grande desconfiança dos mitos em que é possível ao masculino gerar o feminino. Inverte-se a ordem das coisas. A mãe foi totalmente esquecida. Apesar da força Athena foi completamente submissa ao poder do Pai. Deve ser honrada pois abre as portas do conhecimento às mulheres, mas lhe falta a sabedoria dada pelos processos cíclicos de um corpo feminino. Faz-se necessário buscar Métis, arrancá-la das entranhas deste patriarcado em que vivemos. Quem sabe ainda nasce um filho que aponte um novo caminho nos relacionamentos humanos. Um caminho em que as diferenças sejam tratadas amorosamente e em que o amor seja mais importante que o poder.

.


terça-feira, 15 de março de 2011

Parafraseando...






Quando o verde de teus olhos se
Derreter na imensidão de meus vales
Nascerá um Novo Céu e
A Terra Prometida

segunda-feira, 14 de março de 2011

É dia da Poesia



Houve um dia em que fui levada a um reino mágico pelo Senhor da Floresta. Lá aprendi a caminhar segura por entre as árvores, a atravessar riachinhos reais e imaginários. Visitei cachoeiras de duendes. Fiz amizade com uma velha árvore já destruída por um raio, que se entregava tranquila à terra daquele monte.
Numa destas caminhadas alguém me leu um poema de Alberto Caieiro. Eu, que até então preferia Álvaro de Campos, fiquei comovida...Parecia falar daquele lugar e situação. Poesia e natureza caminham descuidadamente de mãos dadas. Quem leu, só leu... Certo é que Caieiro desde então tem sido meu amigo e o Pastor Amoroso minha canção.

O Pastor Amoroso

I

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo.
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor —
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.

Manual da Auto Atrapalhação III

Uma das formas mais eficazes de criar uma infelicidade constante é levar ao pé da letra o que Sartre disse: " O inferno são os outros!". Pura verdade. Fonte inesgotável de decepções e frustrações, os relacionamentos podem transformar sua vida num martírio. Comece imaginando como seriam os pais ideais, o parceiro ideal, os filhos, amigos, chefes ideais. Todos existindo com a única função de cumprir os seus desejos proporcionando satisfação plena. Se algo sair errado em sua vida, obviamente a culpa é do outro. Qualquer que seja este outro. Pode ser Deus ou Barack Obama. Ou alguém bem próximo. Saiba ,porém, que se a felicidade vem através do outro a tragédia também virá.

domingo, 13 de março de 2011

Via dolorosa


Madrugada de domingo. Treze de março. O telefone toca. Uma voz desalentada anuncia a perda do filho de uma de minhas irmãs de alma. O choque é tamanho que sinto a realidade se partir ao meio. Existe um mundo em que isto poderia acontecer e outro em que ele continuava bem, belo e jovem como era.
Vou para a casa deles e lá presencio uma das cenas mais comoventes de minha vida: a mãe, com toda a ternura que cuidou de seu menino, nascido do coração, pede ajuda para escolher a melhor roupa para que com ela fosse sepultado. Segura nas mãos os óculos destruídos no acidente. Enxergasse ele um pouco melhor estaria ali...
Tive que rever minha fé naquele dia. Desde sempre acreditei que as mães pediam por seus filhos e deveriam ser obrigatoriamente atendidas . Ninguém mais do que minha irmã estava em constante oração por seus queridos. Entretanto nada pode salvá-lo. Compreensão pequena a minha. Fé inexistente. Uma certa revolta foi tomando conta de mim e medo, muito medo se estávamos desamparados neste mundo hostil onde todo o tipo de desgraças pode acontecer.
Conviver com a morte aprendi desde o ventre de minha mãe, mas de um filho tão querido?!
Alguém me lembrou da história hindu em que a mãe com o filho morto nos braços procura Vishnu para implorar que ele o traga de volta à vida. O deus disse que o fará se ela lhe trouxer uma tigela de arroz doada por algum dos moradores de sua aldeia. A mulher se anima. Qualquer de seus vizinhos lhe faria a gentileza com prazer. O deus acrescenta que tal tigela deveria vir de uma casa em que nunca ninguém da família deveria ter sido tocado por Yama, o deus enlaçador da morte. Depois de percorrer todas as casas, apesar da boa vontade de seus moradores, a mãe retorna com as mãos vazia e prostrando-se diante de Vishnu entrega-lhe seu amado menino , tendo entendido que não há como fugir do ciclo de vida e morte e que sua dor era mais uma entre tantas.
Minha irmã, mais sábia e mais forte do que eu, continua sua vida ainda mais amorosa do que antes, com a certeza de que seu querido continua em sua jornada na direção da luz, ainda que numa outra dimensão. Sua fé a sustenta ajudando outras pessoas a fazer e aceitar a travessia.

sábado, 12 de março de 2011

A Banda, o filme


Um de meus portais favoritos sempre foi o cinema. Quando digo portal é o que nos leva à uma nova dimensão interna, extensões desconhecidas que acessamos com uma imagem, um diálogo, uma história...
Nestes dias chuvosos de Matutu, com trilhas e cachoeiras um tanto complicadas, a saída foi nos voltarmos para a Sétima Arte. Criou-se o inegualável Festival Simba de Cinema. Numa sala improvisada, com tela e tudo o mais, fomos salvos da claustrofobia cinza por belas imagens de lugares longínquos.
O primeiro filme a ser exibido foi " A Banda", uma produção franco israelense de 2007, que retrata a visita de uma banda militar egípcia a Israel para tocar num Centro de Cultura Árabe. Como ninguém os recebe na chegada, com todas as dificuldades de comunicação tentam chegar ao local da apresentação por conta própria e acabam parando numa cidade perdida no meio do deserto.
Fugindo do lugar comum da animosidade entre árabes e israelenses, o filme passa a tratar dos encontros humanos, das diferenças e sobretudo, das semelhanças que nos unem. A língua usada para se comunicarem é um inglês que, por vezes, não dá conta daquilo que só se pode dizer na língua materna. Até por isso, o não dito é o que sobressai. Com uma sensibilidade ímpar o diretor passeia pelas possibilidades e impossibilidades dos personagens, trazendo à luz as pequenas transformações no percurso.
É ao mesmo tempo muito divertido, com cenas hilárias, e comoventemente dramatico por desvelar que a condição humana é perpassada por "toneladas de solidão".
Mereceu o prêmio do Festival. O osso de ouro.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Amor entre livros




Ele, quando pequeno, contava histórias de amor entre um elefante e uma borboleta. Talvez pelo apego que tinha a seu elefantinho de pelúcia amarelo.
Pequena ,ela se desejasse algo difícil de conseguir, logo tinha a solução: desenhava o objeto desejado, pintava com todo o cuidado, recortava e pronto. Sentia-se plenamente feliz ao possuir o desenho. Preenchia-se de imagens vivas.
Depois de aprenderem a ler, encontraram seu reino: os livros. Separados por vários bairros ganharam prêmios de suas perspectivas bibliotecas por mais terem lido no ano tal.
Cresceram, caminharam pela vida sempre achando mundos e consolo na leitura, Misteriosamente foram trabalhar na mesma livraria ainda que em locais diferentes da cidade.
Correio interno vai, correio interno vem...Telefonemas daqui e de lá. Um dia se encontraram. Ele encantou-se com aquele jeitinho distraído e divertido dela. Ainda mais que parecia seu amor dos contos de fada. Ela achou encantador que toda aquela tagarelice escondesse uma timidez cativante. Foram muitos os assuntos e pelo menos 3 cigarros para que ele tomasse enfim coragem e a beijasse.
Deste primeiro beijo, porém, começou a se formar no imenso papel da vida um palácio com paredes e paredes de estantes repletas de livros, muitas gravuras e quadros maravilhosos. Neste lugar mágico ouve-se Cartola e Johnny Cash o dia todo. Por lá passeiam felizes gatos variados e esperam, um dia, ter cachorros também.
Ele, elefante pela memória privilegiada e ela, borboleta, bela e um tantinho avoada, caminham de mãos dadas pelas histórias que continuam a criar.





quinta-feira, 10 de março de 2011

Na chuva também se vive...


Desde muito pequena amo fazer aniversário. Amo de forma muito peculiar. Gosto de celebrar este renascimento cíclico de forma solitária e recolhida...Nem sempre dá certo. Quando fiz 40 anos fui a Noronha conhecer os golfinhos. Foi maravilhoso, mas solidão e recolhimento que é bom naquele reino de Afrodite...
Agora fazer 50 anos...Meio século ,como insistem em me lembrar. Resolvi que iria sózinha para meu refúgio. Vale do Matutu.
Desta vez não fiz as honras necessárias aos deuses da chuva. Haja água caindo do céu e abrindo sulcos profundos na terra.
A grande árvore continuava satisfeita a eterna conversa com a cachoeira e começava a manifestar suas flores de um rosa forte. As borboletas azuis desviavam magicamente dos infindáveis pingos. Eu, que já sou meio avessa à chuva por aqui, comecei a me arrepender da jornada. Pedia e pedia que estiasse, que aparecesse uma nesguinha de azul. Nada. Chuva de diversas intensidades. Depois de alguma birra e muitos espirros pude perceber que as belezas da paisagem não haviam mudado. Por trás da cortina de água tudo estava lá.
A estrada que liga a cidade ao vale passou a ser um grande problema. As pessoas esperadas para o Carnaval teriam muita dificuldade para chegar. Paulo, o cuidador de todos, estava visivelmente preocupado. Mas de uma forma ou de outra todos chegaram. Cobertos de lama, mas felizes e ilesos.
Poucos se aventuraram nas trilhas e o programa passou a ser ler, assistir filmes no cinema improvisado. Inventamos até um festival de cinema com homenagem especial para meu cachorro emprestado, o Simba. O prêmio acabou sendo o Osso de Ouro... De resto era conversar muito. Contar "causos" e histórias. Eu me deleitei em ouvir e conhecer. Gentes tão surpreendentes...Com muita vida a narrar. Encontros de amor. Mortes na sala de cinema. Discussões teológicas, geográficas e gastronômicas.
Encontrei até um irmão gêmeo que nasceu 3 anos depois e de outra mãe. Foi um reconhecimento imediato. Parecenças piscianas, descobrimos ,encantados, que líamos os pensamentos do outro. Discutimos Tolkien, Neil Gaiman e afins... Bom demais da conta.
Chegou a hora de voltar e começa uma nova aventura... Enduro no Parque do Pico do Papagaio. Subimos seis numa velha Rural, um trator na frente e sacolejamos por duas horas e meia até Aiuruoca. Cantamos durante o caminho para dar forças ao bravo Gilson, o motorista que antes só havia atolado na Amazônia. Valeu cada sobressalto...
Não consegui tomar banho de cachoeira, nem descansar no colo de minha mãe , a velha paineira. Voltei, entretanto, repleta de tantas paisagens e encontros, que tenho certeza que recebi mais do que fui buscar.


As mulheres nos haréns

De volta da Pásargada, lembrei-me de uma pequena história que ouvi Regina Machado contar e que pode ser encontrada em seu livro "O violino cigano".
Eu a conto desta maneira muito pessoal:
As mulheres nos haréns, como todos os humanos, geralmente são acometidas por duas sortes de problemas, aqueles que em árabe são chamados muskil, que são aqueles cotidianos de ordem prática e externa. Coisas que se perdem, coisas que se quebram, coisas que são roubadas e muitas outras coisas... As mulheres nos haréns são espertas e sabem que tudo isto pode ser resolvido com conselhos, paciência ou com o próprio tempo.
Existem, porém, os chamados problemas hem. Como seria um problema hem? Aquela inquietação constante que não dá descanso em tempo algum. Um aperto no peito, um desassossego sem trégua. Quando uma das mulheres começa a ficar estranha e perde a serenidade, ela sabe o que fazer. Segue solitária até o mais alto de seu palácio, senta-se e muito silenciosa passa a contemplar o horizonte. Fica e fica tempos a olhar os pássaros, as nuvens, o Sol fazendo seu caminho no céu, a Lua surgindo, as estrelas...Quando seu coração se acalma ela retorna às suas companheiras, que por conhecerem todas aquela aflição, a cercam de cuidados e mimos.
São sábias mulheres, que sabem que os problemas hem só podem ser curados com silêncio, contemplação e gentileza.


quinta-feira, 3 de março de 2011

Fui-me embora para Pasárgada


Quando estudava no Caetano de Campos da Praça da República, uma destas companhias de teatro que visitam as escolas, apresentou uma peça toda de poemas de Manuel Bandeira. Fiquei tocada, apesar das distrações da adolescência. Um dos que mais mexeu comigo foi o célebre " Vou-me embora pra Pasárgada". A idéia de que existe um lugar mágico onde minha alma se sentiria acolhida me fisgou.
Muitos anos depois, já apresentando sinais de cansaço na jornada e perdido alguns sonhos e ilusões, fui convidada para fazer um Encontro no fim do mundo. Um lugar que nem constava dos mapas, como disse preocupado o pequeno sobrinho de uma das participantes. Fui meio que desavisada. O caminho é longo, cheio de curvas e dificuldades. Viajar em grupo é sempre um tanto complicado, invariavelmente alguém se desvia do caminho. Horas na estrada, enjôos na serra...Percebi que estava indo para Avalon e as brumas precisavam ser levantadas magicamente. Nunca é tranquilo lá chegar.
Entretanto, no momento em que passei a porteira e atravessei o riachinho que dá passagem para a pousada a beleza do lugar me enfeitiçou. Esqueci todas as complicações da viagem e passei a explorar, atenta, cada quadro da paisagem que chega a machucar os olhos de tanta grandiosidade. De longe avistei a Paineira, uma velha senhora de mais de trezentos anos, que conversa há séculos com a cachoeira ao longe. Meus olhos se encheram de lágrimas ao reconhecer um ser tão antigo e poderoso que, pela ganância dos homens, quase virou gamela.
Senti que havia encontrado o refúgio perdido dos meus anseios de adolescente. Meu lugar de comunhão e nutrição. A casa de minha Mãe.
Agora que vou terminar mais um ciclo, escolho partir só e celebrar meu aniversário longe de meus queridos daqui. Descontentamentos se deram. mas sinto que é necessário silenciar, contemplar, refazer as forças no colo da árvore, nas trilhas com o grande cão Simba, nas gentilezas do Paulo e do Cândido...
Vou-me embora pra minha Pasárgada
Lá sou rainha de mim mesma
Lá nada mais desejo
Do que a beleza em que nutrirei...
















quarta-feira, 2 de março de 2011

Perséfone e a romã


Ela acordara aquela manhã com a sensação de ter sonhado a noite inteira com flores estranhas que pareciam atraí-la. Logo algumas de suas amigas vieram vê-la e esqueceu-se dos sonhos. Gostaria de sair a passear sem rumo ,mas sabia que sua mãe sempre tão cuidadosa não gostava que perambulasse distraída. Já era quase uma mulher e Deméter, sua mãe gostava de mantê-la sempre por perto.
Entretanto naquele dia sentia uma necessidade incomum de se sentir livre e correr pelos campos. Decidiu desobedecer e convidou as amigas para com ela se embrenharem por novos caminhos. Estava viva e feliz. Do nada surgiram as flores de seus sonhos e ela lembrou-se. Lá estavam , com aqules olhinhos que pareciam chamá-la. Ao estender a mão para colher uma flor,o inesperado se deu: a terra se abriu debaixo de seus pés e dela surgiu uma magnífica carruagem com cavalos negros conduzida por um homem aterrorizador. Sentiu-se agarrada por braços de aço e tragada pela terra. Só consegui gritar pela mãe.
Ao chegar nas profundezas percebeu que estava no lugar de onde não se volta. Entretanto, depois de se acostumar com aquela luminosidade diferente, cheia de sombras, sentiu que não era tão perigoso assim. Olhou para aquele que a havia raptado cheia de curiosidade. Sabia de quem se tratava. Hades, o grande Deus dos mundos inferiores. O senhor dos mortos. Seu tio. Não sentiu mais medo.
Enquanto isto sua mãe, Deméter, movia céus e terra, deuses e mortais para encontrá-la sem sucesso algum. O tempo passava e ela se acostumando com a nova vida. Com este novo mundo.
Quando enfim a mãe devastou a terra deixando os mortais sem alimento e os deuses sem oferendas, Zeus, seu pai, resolveu interferir e pedir ao irmão que devolvesse a menina.
Mas Coré, havia sucumbido aos encantos de seu raptor e principalmente deste mundo subterrâneo onde era tratada como rainha. No momento da despedida Hades lhe ofereceu uma romã. Ora, todo mundo sabe que não se pode nem sentar, nem provar de alimento algum naquele lugar sob a pena de lá ficar preso pela eternidade. Ela tomou a romã nas mãos e fitando nos olhos aquele homem comeu algumas sementes.
Confusão no mundo dos deuses! Como resolver este impasse? Depois de muita discussão alguém sugeriu que ela passasse parte do tempo com a mãe na superfície e parte do tempo com Hades no mundo inferir. Assim se fez... Seis meses com um, sei com outro .
O certo é que de Coré ninguém mais ouviu nenhuma notícia, mas Perséfone, seu nome de rainha, ainda deu muito o que falar.
Até a Bela Adormecida sonhou com ela nos infindáveis anos em que dormiu...

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...