quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sobre lobos

Quando li pela primeira vez este livro fiquei tão encantada ao reconhecer comportamentos meus que pareciam extremamente inadequados para uma mulher adulta, psicóloga de respeito e coisa e tal... Tive um amigo que se molestava com minha alegria um tanto esfusiante demais para o gosto dele. Por vezes e vezes me contive para não ser tachada de deslumbrada, tentava bravamente me comportar como se deve, mas sempre o "rabo da Loba" aparecia em algum momento. Hoje não ligo mais, sigo os conselhos de minha mestra Clarissa e me divirto muito com a cara de reprovação de alguns.





La Loba é a guardiã da alma. Sem ela, perdemos nossa forma. Sem uma linha direta com ela, diz-se que os seres humanos ficam desalmados ou que sua alma está perdida. Ela dá forma à casa da alma e constroi mais com suas próprias mãos. Ela é a que usa um avental velho. Ela é a que tem um vestidinho mais comprido na frente do que atrás. Ela é a que dá pancadinhas, alisa, afaga. Ela é a criadora de almas, de lobos, a guardiã do lado selvagem.
Portanto em termos imagísticos - quer você seja um lobo negro, um cinzento do norte, um vermelho do sul, quer seja um branco do Ártico - você é a perfeita criatura instintiva. Embora algumas pessoas preferissem que você se comportasse e não demonstrasse alegria exagerada ao dar as boas-vindas a alguém, faça-o de qualquer jeito. Haverá quem se afaste de você com medo ou repulsa. A pessoa amada irá, porém, valorizar esse seu novo aspecto - se ele ou ela for a pessoa certa para você.
Algumas pessoas não apreciarão sua atitude de dar uma cheirada em tudo para ver o que é. E, pelo amor de Deus, nada de se deitar de costas no chão com as patas para cima. Menina feia. Lobo feio. Cachorros feio. Certo? Errado. Não ligue. Divirta-se.

Estés, Clarissa Pínkola - Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Nasrudin dá esmolas...

Nosso querido personagem mostra verdades ocultas da alma...


A luta dos cegos 


Certa manhã, quando dirigia-se ao mercado, Nasrudin viu alguns cegos e,
fazendo tilintar as moedas em sua bolsa, disse em voz alta:
- Amigos, amigos, peguem estas moedas. Tu, toma esta, tu, esta, e vocês
repartam o resto - e enquanto fazia isso, fazia tilintar as moedas em sua
bolsa.
É evidente e seria até demais esclarecer, que não repartiu um só tostão.
Produzida a cena, afastou-se para observar a seguinte situação: Os cegos
começaram a precipitar-se uns sobre os outros, exclamando e gritando: " deu
tudo para ti". Ou então:" Vocês ficaram com tudo ao invés de repartir". Ou:
" Eu nada recebi", " mentes", " dá-me a minha parte", etc. etc.
Isso transformou-se em empurrões, socos, chutes, insultos, xingamentos,
terminando em uma grande batalha indescritível, dada a cegueira total
reinante.
Nasrudin, que seguia de perto as peripécias da batalha, murmurou:
- Isto é o que poderia chamar-se de uma " uma luta de cegos por motivo inexistente".

inexistente".

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A Criança de Sal


Histórias comovem e transformam, ao mesmo tempo que descortinam paisagens insuspeitadas de nosso mundo interno. Outro dia ao contar uma história para as crianças na Escolinha do Centro Educacional Jabuti, um dos pequenos disse que queria ver imagens. Eu lhe disse que fechasse os olhos e imaginasse a Baba Yaga, a casa dela, a Vasalisa e assim por diante. Deste jeito ela teria todo um novo mundo de imagens que seriam só dela. Passear por estas imagens imaginadas nos alimenta e enriquece.
Esta pequena e potente história nos leva ao nosso vasto oceano interior...




Era uma criança feita de sal que desejava muito saber de onde vira. Partiu então em uma longa viagem, percorrendo muitas terras para tentar chegar a esse entendimento. Por fim, aproximou-se da orla de um grande oceano. "Que maravilha!", pensou e mergulhou um pé na água. O oceano instigou-a um pouco mais, dizendo:
- Se queres saber quem és, não temas.
A criança de sal foi entrando na água, dissolvendo-se a cada passo, até que exclamou:
- Ah! Finalmente sei quem eu sou!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Como Nasrudin aprende


Mais uma vez nosso querido mestre transborda sabedoria...
APRENDIZADO


"Como foi que você aprendeu tanto, Mullá?", perguntaram certa vez a Nasrudin.

"Falando muito", respondeu ele.

"Vou colocando em seqüência todas as palavras que me vêm à mente. Quando eu fico interessante, posso ver o respeito no rosto das outras pessoas. Na hora em que isso acontece, começo a tomar nota do que disse".

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Mais um sermão de Nasrudin


Mais uma vez nosso querido personagem surpreende na hora de transmitir seus conhecimentos...


QUEM SABE CONTA PRA QUEM NÃO SABE

Os moradores da vila onde Nasrudin morava pediram a ele que fizesse um sermão na mesquita. O objetivo era testar sua sabedoria, já que ele era visto como uma espécie de homem santo. Nasrudin concordou. Andou calmamente até a mesquita, olhou para a multidão e perguntou: 
– Vocês sabem o que eu vou dizer?
– Não, responderam.
– Eu me nego a falar para uma platéia de ignorantes, disse ele. E foi embora pra casa.
Os moradores ficaram vexados e formaram uma comissão para convencer o Mullá a ir de novo à mesquita. Na sexta seguinte, ele voltou e repetiu a pergunta. Dessa vez a platéria respondeu em uníssono. 
– Sabemos.
– Então não há motivo para eu estar aqui, disse Nasrudin.
Novamente, os moradores se organizaram e conseguiram convencer o Mullá a fazer a terceira tentativa. Mas dessa vez, os moradores estavam preparados. Quando Nasrudin repetiu a pergunta, uns disseram que sim e outros disseram que não.
– Excelente, disse o Mullá. Quem sabe conta para quem não sabe

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Sobre o cuidar

Já faz um tempo assisti a um filme despretensioso, meio drama, meio comédia romântica com a Sandra Bullock. "28 dias", que é o tempo de internação para reabilitação de viciados em drogas. Rehab mesmo. O que mais me chamou a atenção era o conselho dado a quem deixava a clínica: antes de começar qualquer relação, fonte inesgotável de ansiedades e inquietações, o paciente deveria cuidar de uma planta pelo menos por um mês e de um animal de estimação por um ano. 
Grande tarefa esta a do cuidar! Para começar temos que considerar as necessidades do que cuidamos. Quanto de água, sol e vento precisa uma determinada planta? Até cactos exigem que de vez em quando se olhe para eles. Gostam de alguns lugares na casa e não de outros e assim por diante. É necessário observar e tentar fazer o melhor. Para começar.
E bicho, então? Que trabalheira que dá. Exige um desprendimento enorme e uma atenção constante. Fazem um monte de coisas estranhas , temos que alimentá-los e lidar com seus dejetos. Se for cachorro tem que sair para passear, se gato brincar um pouquinho. E definitivamente, eles não fazem mesmo tudo o que queremos. Exercício de amor incondicional e de total aceitação. Quem sabe depois podemos começar a aplicar estas lições às nossas relações um tanto viciadas?

domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos Pais sem pai


                               

Acho estranhos os caminhos da vida...Neste dia dos Pais só consigo pensar nos meus sobrinhos que perderam os seus quase que simultaneamente. Meu cunhado se foi numa quarta e meu irmão no dia seguinte. Ficaram os três sem esta figura tão importante e constitutiva. Meu irmão perdeu os momentos mais interessantes da vida de Felipe que de menino levado cresceu e virou um belo homem, honrado e cheio de vida. Não acompanhou a transformação de Sarah numa bela mulher. No casamento de meu sobrinho não conseguia parar de chorar por saber o quanto meu querido irmão gostaria de estar ali...
Já o Gabriel que me veio como presente tardio, como o terceiro filho que sempre quis ter, este percebo que sente todos os dias a falta. Como ele mesmo já escreveu, o desejo de compartilhar momentos simples e cotidianos, que nunca teve a oportunidade; tinha apenas três anos quando o pai se foi. Fica uma lacuna imensa no peito e um desejo de encontrar alguém para colocar no lugar. Por vezes, até parece que preencheu, mas basta um silêncio mais prolongado e se dá conta do que perdeu e para o que não existe substituição.

sábado, 13 de agosto de 2011

Criatividade em Teia - Primeiro Encontro


E começamos mais uma teia. Mais um grupo que, até agora, é um grupo de mulheres. Com muitas histórias e processos em andamento. Imagens e imagens nos visitaram:  estações do ano; lagartas, que se transformam em borboletas, que abrem timidamente suas asas num primeiro voo; muros a serem transpostos por cima ou por baixo; curvas ; mares... Muito a ser experimentado. Muito a ser trocado. Tudo a ser escrito.
Saramago, num texto inspirado e inspirador, diz que o que sustenta os mundos são as conversas infindáveis entre as mulheres. Eu concordo e espero com curiosidade, quase infantil, as ampliações que possam vir destes encontros.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Clarissa fala de como escolher um companheiro de jornada

Nesta releitura de Clarissa Pínkola tenho me deparado com preciosidades um tanto esquecidas e indicações de caminho muito úteis. Ainda no capítulo da história da Vasalisa que fala sobre intuição, Clarissa mostra como podemos fazer escolhas melhores, especialmente quando estamos procurando alguém para partilhar nossas paisagens mais profundas.

Clarissa fala:

"A forma de manter o nosso vínculo com o lado selvagem consiste em nos perguntarmos exatamente o que desejamos. Essa pergunta é o que separa a semente do estrume. Uma das discriminações mais importantes que podemos fazer nesse sentido é a da diferença entre o que acena para nós de fora e o que chama de dentro da nossa alma.
Funciona da seguinte maneira. Imaginemos um bufê com creme chantilly, salmão, rosquinhas, rosbife, salada de frutas, panquecas com molhos, arroz, curry, iogurte e muitos, muitos outros quitutes colocados em mesa após mesa. Imaginemos que examinamos tudo e vemos algumas coisas que nos agradam. Podemos comentar com nossos botões, ' Ah! Eu realmente gostaria de comer um pouco daquilo, e disso aqui, e um pouco mais daquele outro prato'.
Alguns homens e mulheres tomam todas as decisões da vida dessa forma. Existe ao nosso redor um universo que acena constantemente, que se insinua nas nossas vidas, despertando e criando o apetite onde antes havia pouco ou nenhum. Nesse tipo de escolha, optamos por algo só porque aconteceu de ele estar debaixo do nosso nariz naquele exato momento. Não é necessariamente o que queremos, mas  é interessante; e, quanto mais examinamos, mais irresistível ele nos parece.
Quando estamos ligados ao self instintivo, à alma do feminino que é natural e selvagem, em vez de examinar o que por acaso esteja em exibição, dizemos a nós mesmas: ' Estou com fome de quê?' Sem olhar para nada no mundo externo, nós nos voltamos para dentro e perguntamos: ' Do que sinto falta? O que desejo agora?' Perguntas alternativas seriam: ' Anseio por ter o quê? Estou morrendo de fome do quê?' E a resposta costuma vir rápido. ' Ah, acho que quero...na verdade o que seria muito gostoso, um pouco disso e daquilo...ah, é, é isso o que eu quero.'
Isto está no bufê? Talvez sim, talvez não. Na maioria dos casos, provavelmente não. teremos de ir à sua procura por algum tempo, às vezes por muito tempo. No final, porém, iremos encontrar o que procuramos e ficaremos felizes por termos feito sondagens acerca dos nossos anseios mais profundos.
Essa discriminação que Vasalisa aprende ao separar sementes de papoula do estrume e milho mofado do milho são é uma das lições mais difíceis de aprender, já que ela exige ânimo, determinação e dedicação, e muitas vezes implica esperar pelo que se quer. Em nenhuma outra atividade isso fica mais nítido do que na escolha de parceiros e companheiros. Um companheiro não pode ser escolhido como num bufê. O companheiro deve ser escolhido pelo profundo anseio da alma. Escolher só porque algo apetitoso está à sua frente não irá satisfazer nunca a fome do Self da alma. É para isso que serve a intuição. Ela é mensageira da alma."
,
Estés, Clarissa Pínkola-Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem- Rio de Janeiro: Rocco, 1996, pags 143 e 144

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O Anúncio de Nasrudin

Este querido personagem apronta mais uma...

O Anúncio

Nasrudin postou-se na praça do mercado e dirigiu-se à multidão:
" Ó povo deste lugar! Querem conhecimento sem dificuldade? Verdade sem falsidade? Realização sem esforço? Progresso sem sacrifício?"
Logo juntou um grande número de pessoas, todas gritando em coro: " Queremos, queremos!"
"Excelente!", disse o Mullah. "Era só para saber. Podem confiar em mim. Contarei a vocês tudo a respeito, caso algum dia venha a descobrir algo assim".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mais uma vez no Matutu



Há 9 anos descobri um lugar onde meu coração bate mais forte e minha alma canta e dança livre. Um vale escondidinho na Montanhas Mágicas da Mantiqueira ( tem placas na estrada com este nome). Sempre que decido ir para lá sobe uma alegria de minhas vísceras. Sempre é difícil chegar lá. Complicações de todas as partes. Mas uma vez que atravesso a ponte e abro a porteira, já avistando a velha senhora Paineira, sei que cheguei à casa de minha alma.  Sou alimentada fartamente pelo azul límpido daquele céu sem fim e pelo intenso verde que passa a me rodear por todos os lados. Sem falar na gentileza com que Paulo e Cândido sempre nos acolhe.
Havia convidado várias pessoas, mas que por um motivo outro não puderam ir. Fomos apenas quatro, número suficiente para muitas conversas, histórias, danças e risadas...Subimos a montanha até um lugar onde se avistam os dois vales e lá, contemplando, nos visitou a história do Ratinho Saltitante acompanhada atentamente por uma borboleta pousada em minha mão. Caminhamos bastante e a Paineira acolheu nossos suspiros e anseios mais escondidos levando-os até os braços da brisa. Fomos até a Cachoeira dos Macacos e fiquei muito tempo a matutar sobre os caminhos das águas. Simba, meu grande amor canino, nos acompanhou em todas as caminhadas, amorosamente
Cedo, porém,  chega a hora de partir. Coração pleno, corpo satisfeito e alma alimentada. E a certeza de que em breve voltarei para minha Pasárgada... Gracias, Matutu!

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Criatividade em Teia

Há tempos, eu e a Cris Balieiro, resolvemos fazer encontros com mulheres de trinta anos para saber quais eram seus anseios, desejos e medos. Convidamos quatro "meninas" e nos encontramos vários sábados para falar sobre quase tudo. Destas conversas nasceram os "Diálogos Femininos" , workshops de mitologia e histórias que reuniram quase cem mulheres. Entre as quatro estava Lizandra, uma jornalista criativa e falante, sempre disposta a experimentar novos caminhos. Depois de terminada esta primeira fase, Lizandra chegou a mim com um convite irrecusável: criarmos juntas uma Oficina de Criatividade para ampliar as possibilidades de expressão, quer escrita, quer outra qualquer... Nasceu então a Criatividade em Teia e vocês são  nossos convidados de honra.

O Barba Azul


Há alguns dias fui convidada por uma amiga muito querida para contar uma história num Grupo de Mulheres que ala coordena. A história do Barba Azul. Respondi que não era uma de minhas prediletas e que quando tento contar uma história que não me toca profundamente não consigo fazê-lo tão bem como gostaria, mas como ela insistiu, concordei. E lá fui mais uma vez estudar Clarissa Pínkola e um dos personagens mais sombrios que conheço. Cheguei a sonhar com o "bicho", meu velho conhecido interno. O bom do pesadelo é que acabei por matá-lo. Finalmente. Hoje quando fui buscar a história, encontrei várias outras versões e esbarrei numa polêmica discussão  no blog, Comentários de Mulher, de uma amiga de Facebook, Suely Nassif , sobre a interpretação de Clarissa. Alguns dizem que a tal moça, por sua curiosidade mórbida, desobedeceu e invadiu o espaço resguardado do pobre homem, que só queria sua privacidade preservada. Pois é...assim muitos defendem que a culpa dos estupros é da vítima, se mulher apanha é porque provocou e por aí vai. O Barba Azul de Clarissa é um aspecto interno autodestrutivo, mas que ele sempre dá as cara no mundo, lá isso ele dá.

O Barba Azul contado por Clarissa Pinkola

Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.

Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.

"Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim", começaram a pensar as irmãs.

Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram quem não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia menos azul.
Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.

- Vou precisar viajar por algum tempo - disse ele um dia à mulher.
- Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem nos altos uns arabescos, você não deve usar.

- Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo.
- E assim ele partiu, e ela ficou.

Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente: - Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é o aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.

As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada. Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.

- Talvez essa chave não sirva para abrir nada - Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho - errrrrrr.
Deram uma espiada na esquina do corredor e - que surpresa! - havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
- Irmã, irmã, traga sua chave - gritou uma delas - Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
- Irmã, irmã, traga uma vela. - Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco mais para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.

Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!
A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
- Oh, não! - exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.

A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha, pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
- Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina - ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após a outra se sangue vermelho.

Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
- Ai, o que vou fazer? - lamentou-se ela. - Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo.

E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
- E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
- Tudo bem, senhor.
- Como estão minhas dispensas? - trovejou o marido.
- Muito bem, senhor.
- E como estão meus depósitos de dinheiro? - rosnou ele.
- Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
- Então, tudo está certo, esposa?
- É, tudo está certo.
- Bem - sussurrou ele - então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
- Onde está a menorzinha?
- Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
- O que você fez com ela, mulher?
- Não... não me lembro.
- Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
- Sua traidora! - rosnou, jogando-a no chão. - Você entrou naquele quarto, não entrou?
Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.
- Chegou a sua vez, minha querida - berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.
- Vai ser agora!!! - rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.
- Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.
- Está bem - rosnou ele - Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.

A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muralhas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.
- Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?
- Não vemos nada, nada na planície nua.
A cada instante ela gritava para as muralhas.
- Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?
- Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.
Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.
- Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? - gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.
- Estamos, estamos vendo nossos irmãos - exclamaram as irmãs. - Eles estão aqui e acabaram de entrar no castelo.

O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.
- Vim apanhá-la - gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da argamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que ele entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que caísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão e matando-o afinal, deixando para os abutres o que sobrou dele.


Comentários de Mulher: 

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Clarissa Pínkola e a intuição

Cresci numa comunidade religiosa que tinha a Bíblia como centro. Aprendi a ler muito cedo neste livro sagrado que exigia atenção e leitura diárias. Talvez por isso eu tenha uma relação semelhante com alguns outros livros com os quais esbarrei pela vida e que, se não são sagrados, falam da alma. Estou relendo pela enésima vez "Mulheres que correm com os lobos" e me deparo com preciosidades trazidas à luz por Clarissa Pínkola. Seu capítulo sobre a Vasalisa é um primor. Fala da intuição como guia de nossas escolhas. E sobretudo que temos direito a escolhas...


" Ter um companheiro/amigo que a considere como uma criatura vivia em crescimento, tanto quanto uma árvore cresce a partir do chão, uma planta ornamental dentro de casa ou um roseiral no quintal...ter um companheiro e amigos que a considerem um ser que vive e respira, que é humano mas também composto de elementos delicados, úmidos e mágicos...um companheiro e amigos que apoiem a criatura que existe em você...são essas as pessoas por quem você está procurando. Elas serão amigas de sua alma pela vida afora. A escolha criteriosa de amigos e companheiros, para não falar nos mestres, é de importância crítica para continuar consciente, para continuar intuitiva, para manter o controle sobre a luz incandescente que vê e sabe".

Estés, Clarissa Pínkola - Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem  - Rio de Janeiro, Rocco, 1994

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Nasrudin e sua eterna sinceridade

Nasrudin, com sua espantosa autenticidade, que parece beirar a tolice, sempre surpreende...


Certo dia, um juiz perguntou ao mestre Nasrudin:
- Mestre, no caso de você ter de escolher entre a justiça e o dinheiro, o que você escolheria?
- O dinheiro, é claro - respondeu Nasrudin, sem pestanejar.
- O quê! - disse o juiz. Pois eu escolheria a justiça sem pensar duas vezes, porque
a justiça não é fácil de ser encontrada, enquanto o dinheiro, este não é tão raro assim. Podemos encontrá-lo por aí sem grandes dificuldades. Estou sinceramente espantado com a sua opção, Nasrudin. Não o julgava capaz de uma ambição, sendo um mestre!
- Meritíssimo, cada um deseja aquilo que mais lhe falta! - respondeu tranqüilamente o mestre Nasrudin.
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