segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Dia da saudade

Saudade sentimos todos os dias: de nossos amados que se foram, dos amores que passaram, dos dias luminosos da infância, dos anos dourados da juventude... Sentimos um saudade imensa de nós mesmos em diferentes momentos de indubitável intensidade. Só em nossa língua tão rica temos uma palavra para nomear este sentimento. Talvez porque nossos ancestrais desbravadores do mar salgado navegassem transpassados por ele, bem como os que deixavam em terra. Nossos poetas cantam nostalgias e saudades com maestria, revelam a falta dos que se foram para outras terras, outros mundos, outros corações.




A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.


Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?


Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.


Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 28 de janeiro de 2012

Contadores de histórias

Ontem eu comecei uma nova fase em meu trabalho na Escolinha do Centro Educacional Jabuti. Desde abril do ano passado tenho me encontrado com as educadoras e com a diretora da creche para juntas trabalharmos o resgate da auto-estima e do valor do educador. A creche agora ganhou uma nova casa da Prefeitura de Mogi das Cruzes  e virão mais 110 crianças, inclusive bebês. Novas pessoas chegaram e ontem começamos a delinear o que será feito durante todo este ano, bem como clarear quais são os valores nos quais acreditamos. Neste momento entra aquilo que desde sempre acreditei ser a melhor ferramenta para executar esta bela tarefa: histórias. Acredito do poder delas para passar sabedoria e tocar lá no fundo da alma deixando tesouros sem fazer alarde. Minha velha avó e minha querida tia deixaram para mim este legado. Ser contadora de histórias é um sacerdócio herdado de ancestrais amadas, conhecidas ou não. Agradeço e honro esta infindável linha de contadoras que dá sustentação a todas as histórias que ainda se contam. Assim fala a mestra Clarissa Pínkola:

" A energia para contar histórias vem daquelas que já se foram. Contar ou ouvir histórias deriva sua energia de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos"

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Já vi este filme II - Pigmalião 2012

Quando ele a conheceu encantou-se com seu sorriso fácil e com seu decote generoso. Ela, de imediato,percebeu que causava uma comoção especial naquele deus. Ele a cortejou com todas as gentilezas e elogios necessários. Ela seduziu e se deixou seduzir. Começaram um relacionamento meio sem rótulos e sutilmente ele passou a sugerir que ela não fosse tão exuberante assim. Não ficava bem. Apesar de um certo mal estar, ela consentiu. Logo ele pediu que não usasse mais aquelas blusas despudoradas, nem aqueles pequenos pedaços de pano que ela insistia em chamar de saia. Ficaria bem de tênis, camiseta e jeans. Assim ela se fez.  Depois resolveu fazer uma limpa nos amigos e amigas. Deveria ser mais seletiva e por favor, aprender a se comportar como uma dama. Nada de cervejinhas e afins.  Passou a lhe indicar os clássicos para que ela se instruísse.  Deveria também  apurar um pouco o gosto musical e gastronômico. Ela, que jamais esperara ser companheira de alguém tão magnificamente poderoso e sábio, a tudo atendia e lentamente foi se transformando no ideal que ele lhe propunha. Mudou de amigos, de gostos. Deixou de lado a família, entrou num curso de enologia, parou de comer pasteis de feira e começou o Pilates. Ele nunca chegou a ficar plenamente satisfeito. Sempre que ela cumpria  uma exigência, ele sacava outra . Certo dia ela se deparou um tanto apagada, apropriadamente sem luz ou cor. Estranhamente nesse dia ele lhe disse que ela nunca teria jeito e foi se encontrar com outra Galatéia.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Para quem chegou anunciada...




Na maioria das vezes não sabemos quando uma pessoa importante vai chegar às nossa vidas. Grandes amigos,    amores eternos aparecem sem avisar. Mas existem alguns que são anunciados por anjos, profecias ou exames de laboratório. Assim aconteceu comigo: andava meio desligada e  fiz um daqueles exames que o médico indica quando você acorda com enjoo dias seguidos. Positivo. Iria chegar alguém. Alguém que já tinha sido sonhado desde muito. Na época não era tão comum se fazer ultrassom e portanto ninguém sabia se ia vir uma menina ou um menino. Decidimos que seria menino: Thiago . Compramos todo um enxoval tendendo para o amarelo - vai que a gente erra - mas decididamente com muitas roupinhas azuis. Eu parecia em estado puro de graça. Era a Deusa gestando a criança sagrada.  
E os meses se passaram, o dia do parto a se aproximar e o terror se abateu sobre mim. Imaginava todas as formas possíveis daquele ser vir à luz. Não conseguia aceitar nenhuma delas. Numa madrugada de domingo vieram as dores e a correria para se chegar ao hospital. Foi uma das experiências mais profundas que já tive:  o mais sobrenatural e o mais primitivo de mãos dadas. E lá estava ela: Rebeca!  Nome dado pelo pai por amar a mulher do Daniel Boone num seriado de sua infância. Com olhinhos vivos a me fitar. Eu, encantada com tão minúscula criatura. Família deslumbrada com a primeira neta.
E o bebê tranquilo cresceu e deu lugar a uma menininha meio enfezada, meio mandona, quase uma Mônica sem Sansão. Veio a adolescente de roupas pretas amando heavy metal e tocando guitarra. Até que se fez a mulher bela, talentosa, com uma eterna pitada de autoridade que sempre assusta os incautos. Aquariana arretada como a bisavó parece nada temer e se lança a novas aventuras de viagem ou de trabalho sempre que o desafio se manifesta. Até hoje ama o amarelo e desde sempre detesta o rosa...


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Poesia consola...

Há dias em que a tristeza consome os que habitam num mundo de injustiças..
Há dias em que a vergonha se abate sobre quem se indigna mas pouco pode fazer.
Há dias em que a dor dos despossuídos consome a alma e apaga o riso.
Nestes dias só o que pode amenizar o desalento é a poesia...








Mãos dadas 



                   Carlos Drummond de Andrade



Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Apenas bons amigos

Eram apenas bons amigos. Conheciam-se há tempos, trocavam confidências, falavam sobre tudo e nada. Cada um com seu caminho. Cada um com seu amor. Nenhum dos dois sabe explicar o que aconteceu naquela tarde chuvosa, apenas um esbarrão, um toque quase banal e fez-se o inesperado anseio. Urgente como só um desejo subcutâneo pode ser. Amaram-se ávidos e surpresos. Um universo se desvelando nas reentrâncias dos corpos. Levantaram-se transfigurados e  voltaram para suas vidas de sempre. Sobre tal acontecimento ninguém mais falou .  Assim seguem. Apenas bons amigos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Hainá e o Ogro

A princesa, para se tornar digna de ser princesa, passa por inúmeros desafios e invariavelmente tem que encarar o lado sombrio e destrutivo , aprender a lidar com ele e a ultrapassá-lo. Neste conto marroquino, nossa protagonista o faz belamente.






HAINÁ E O OGRO

Num vilarejo do Marrocos, bem perto de uma grande e escura floresta, morava Hainá e sua família.
Hainá era bonita e feliz. Feliz porque dali a pouco iria se casar com seu primo Adil.
Um dia, as moças da cidade se juntaram para catar lenha na floresta. Naturalmente Hainá foi junto. Fazia um dia lindo e ninguém num dia assim tinha medo da floresta.
Perto das quatro os feixes de lenha tinham sido amarrados e todas as moças estavam prestes a tomar o caminho de volta para a aldeia. Mas o céu cobriu-se rapidamente de nuvens negras - o trovão trovejava - uma tempestade ia estourar. E a densa floresta logo ficou escura. Foi esse momento que o ogro escolheu, um ogro horroroso, para pular de uma árvore para o meio das moças. Elas escaparam gritando muito alto:
- Hainá, corra rápido!
Mas o ogro precipitou-se por cima dela e a carregou até sua toca. Ninguém tinha coragem de avisar Adil, o noivo de Hainá, de que sua noiva tinha desaparecido. Todos sabiam que ela deveria já ter sido comida pelo ogro. Todos sabiam que Adil, o corajoso, iria vingar Hainá. Mas todos enfim também sabiam que os ogros são mais fortes do que todos os jovens da face da terra. Então, porque deixar inutilmente Adil se deixar matar?
Uma amiga de Hainá, um dia, porém, contou toda a verdade a Adil. Mas ele não ouviu nenhum conselho. Pegou uma espada, pão, tâmaras e leite e se foi logo em busca de sua noiva. No caminho passou perto de uma colina toda coberta de flores vermelhas, só de flores vermelhas. Adil achou isso estranho e perguntou a razão disso à colina. A colina logo respondeu:
- Estou coberta de flores vermelhas porque Hainá passou por este caminho.
Um pouco mais longe Adil contemplou outra colina coberta de flores azuis, unicamente de flores azuis.
Quando perguntou a razão de a colina estar coberta de flores azuis, ela respondeu:
- Adil, estou coberta de flores azuis porque Hainá passou por esta caminho.
A terceira colina, recoberta de flores brancas, intrigou Adil. Este perguntou o porquê disso.
- Sou branca, até muito branca, Adil, porque Hainá mora aqui.
Aos pés desta magnífica colina branca havia uma aldeia que se esquentava tranquilamente ao sol. Algumas mocinhas puxavam água do rio e Adil perguntou-lhes se conheciam Hainá. Elas pareciam sem graça ao responder. Mas uma delas confessou:
- Hainá mora naquela grande casa ali. Mas cuidado, a casa é habitada pelo...
- Eh! venha logo, venha logo, Rabicha, é hora de voltar para casa! - diziam as amigas.
Adil desconfiava que a casa fosse habitada pelo ogro. Tinha ,portanto, de ser muito prudente e utilizar a sua Esperteza. Pediu a uma galinha que penetrasse na casa, amarrasse a seus pés um fio tecido por Hainá e voltasse, saindo de lá correndo. A galinha logo aceitou. Um pouco mais tarde, Adil percebeu  a galinha com o fio de seda nos pés, escapando, correndo da casa, e para sua maior felicidade, vinha atrás a perseguindo a bela Hainá procurando evitar que a ave fugisse.
Hainá estava toda feliz de reencontrar Adil e logo lhe pediu:
- Adil, Adil, vá embora, por favor, esconda-se. O ogro vai voltar para casa e sentir seu cheiro, encontrá-lo e comê-lo. Espere à noite na beira da floresta, vou tentar fugir. À meia-noite, entre devagar pela porta que vou deixar entreaberta e venha me ajudar a escapar. Sobretudo, Adil, não esqueça sua faca bem afiada.
Adil prometeu, olhou mais uma vez para Hainá, e dirigiu-se em direção a uma pequena cabana abandonada, onde pretendia se esconder até meia-noite.
Quando o ogro voltou, no comecinho da noite, ficou farejando por todos os lados.
- Que coisa, que coisa, que coisa, está cheirando a carne fresca!
Hainá, o que é isso?
- Não é nada, mestre ogro. É o cheiro da moça que foi puxar água no rio da cidade.
- Água? Água? Está bom, está bom! Vou dormir. Amanhã tenho muitas crianças para devorar. Venha cá, Hainá!
E o ogro enrolou na sua mão os cabelos longos de Hainá, como fazia todas as noites, para impedi-la de fugir.
Depois caiu no sono acima de um monte de peles com Hainá aprisionada ao seu lado.
À meia-noite, Adil entrou devagarinho pela porta entreaberta. Logo percebeu o ogro e Hainá com os seus longos cabelos enrolados na mão peluda do ogro. De uma facada só Adil cortou os cabelos de Hainá , que a mantinham presa. Hainá se levantou, mas, no mesmo instante, primeiro baixinho, logo cada vez com mais força, os pratos e as xícaras da sala começaram a circular com barulho e a gritar:
- Hainá vai fugir com seu primo! Ei! você que está dormindo, acorde!
Um xícara logo continuou:
- Ei! você que está dormindo, acorde! Hainá vai fugir com seu primo!
Logo Hainá entendeu que a louça estava alertando o ogro. Abriu um saco de sal e o espalhou em tudo, até em cima dos utensílios. Subitamente todos se calaram. Enquanto isso, o ogro não parou um instante de roncar. Hainá e Adil fugiram correndo. No fundo da cozinha um dos utensílios não recebeu salo, era o pilão. Ele logo tomou conta de avisar o ogro:
- Ei! você que está dormindo, acorde! Hainá caba de fugir com seu namorado, Adil!
- Hum! Hum! Hainá, onde você está?
- Ela foi embora. Ela foi embora!.
Com uma raiva negra, o ogro se levantou, montou em seu cavalo e galopou atrás dos fugitivos.
Quando Hainá ouviu de longe o ogro chegando, puxou Adil para trás de uma árvore plantada ao longo do caminho e, com muita coragem, no momento em que o ogro passou diante da árvore galopando, lhe jogou um punhado grande de sal na cara. Com um grito espantoso, ogro e cavalo desapareceram num instante.
Na calma da floresta apaziguada, Hainá e Adil seguiram tranquilamente  seu caminho. Foram reencontrar sua aldeia, seus parentes e amigos. Sabemos também que não irão demorar para se casar. Deixemo-los lá e voltemos para cá.

Bonaventure, Jette - Variações sobre o tema mulher - São Paulo: Paulus, 2000- (Amor e psique)



quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Uma história sobre morangos...

Muitas histórias falam de tempos tão distantes que se perderam na memória...Sobre amores e sobre frutos...Esta é uma destas que, ainda por cima, tem grande poder curativo.






Morangos

Muito tempo atrás, no começo do mundo, viviam o primeiro homem e a primeira mulher. Eles moravam juntos como marido e mulher , e se amavam com ternura. Mas um dia brigaram. Embora nenhum deles conseguisse se lembrar do motivo depois, a dor aumentava com cada palavra dita até que, finalmente, com raiva e infelicidade, a mulher saiu de casa e começou a se afastar para o leste, em direção ao nascente.
O homem sentou-se sozinho, em sua casa. A raiva havia passado e tudo o que restara era uma dor e um desespero terríveis.
Um espírito ouviu o homem chorando e se compadeceu dele. O espírito disse: "Homem, eu vi sua mulher caminhando para o leste em direção ao sol nascente".
O homem saiu atrás da esposa, mas não conseguia alcançá-la. Todos sabem que uma mulher zangada caminha rápido.
"Eu irei na frente e verei se é possível desacelerar os passos dela", disse o espírito, que logo encontrou a mulher caminhando, com passos rápidos e zangados, e com o olhar fixo à sua frente.
Havia dor em seu coração. O espírito viu alguns arbustos de mirtilo crescendo ao longo da trilha, e fez os botões se abrirem em flor e amadurecerem em frutos. Mas o olhar da mulher permanecia fixo. Os seus passos não ficaram mais lentos. Ela não olhava nem à direita, nem à esquerda e não viu as frutinhas.
O espírito fez as árvores da floresta abrirem suas flores, uma a uma, e amadurecerem seus frutos. Mas os olhos da mulher permaneciam fixos e ela ainda não via nada além de sua raiva e dor. Então o espírito fez crescer um tapete verde ao longo da trilha, ornamentado com minúsculas flores brancas e cada flor, aos poucos, amadurecia em uma frutinha que tinha a cor e a forma do coração humano. Enquanto a mulher caminhava, ela esmagava as frutas minúsculas sob seus pés. Um aroma delicioso subiu até suas narinas. Ela parou e olhou para baixo e viu as frutinhas. Ela colheu uma e a comeu, e descobriu que seu gosto era doce como o próprio amor.
Então ela começou a caminhar devagar, colhendo as frutinhas enquanto prosseguia e, ao se inclinar para colhê-las, ela viu seu marido se aproximando por trás. A raiva havia desaparecido de seu coração. Tudo o que permaneceu foi o amor que ela sempre sentiu. Então, ela parou à espera dele e juntos eles colheram e comeram a fruta. Finalmente, retornaram para casa, com um novo gosto de paz e felicidade.

Mellon, Nancy - Corpo em equilíbrio: o poder do mito e das histórias para despertar e curar as energias físicas e espirituais - São Paulo, Cultrix, 2010.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Rubem Alves fala de árvores

Amo árvores. Desde muito pequena tenho a estranha mania de conversar com elas..Conversar é modo de dizer. Eu falo , elas ouvem. Mas, por vezes, pareço sentir o que elas gostariam de dizer. Se acordo nesta cidade difícil e cinza , meu humor um tanto azedo pelo trânsito e pela correria sempre me deparo com alguma que pode fazer meu dia se iluminar. Creio que compartilho esta minha esquisitice com Rubem Alves, Caieiro e muitos outros. Estou em boa companhia...





"Olho para cima e para os lados para ver as árvores . Tento ouvir a sua silenciosa pregação. Se pregam é porque pensam. Mas seus pensamentos são diferentes dos nossos. Elas pensam da mesma forma como produzem brotos e flores. Não pensam pensamentos da cabeça, como nós. Ar árvores não têm cabeça. Não precisam ter cabeça. Elas pensam com o corpo: Raízes, tronco, galhos, folhas, flores , frutos. Pensam sempre os pensamentos que devem ser pensados, isto é, pensamentos que têm a ver com a vida. Agora, depois da chuva, as tipuanas e outras árvores estão cobertas de brotos novos. Os brotos novos são seus pensamentos alegres, pensamentos que as árvores devem ter, quando a primavera se aproxima. Os ipês têm outros pensamentos. Eles não são iguais às tipuanas. Estão floridos. Faz duas semanas, eram os ipês amarelos. Agora, os ipês-rosas e os ipês-brancos. Floriram não por felicidade mas por medo...."
"As árvores sabem que a única razão da sua vida é viver. Vivem para viver. Viver é bom. Raízes mergulhadas na terra, não fazem planos de viagem. Estão felizes onde estão. Enfrentam seca e chuva, noite e dia, chuva e calor, com silenciosa tranquilidade, sem acusar, sem lamentar. E morrem também tranquilas, sem medo. Ah! Como as pessoas seriam mais belas e felizes se fossem como as árvores. É possível que os estóicos e Spinoza tenham se tornado filósofos tomando lições com as árvores.
Olhando para as árvores, tive por um momento a ideia de que Deus é uma árvore em cuja sombra nós, crianças, brincamos e descansamos. Pura generosidade sem memória.
Acho que o verdadeiro, sobre São Francisco, não é que ele tenha pregado aos peixes e pássaros. A verdade é que ele ouviu o sermão das árvores. Por isso ficou tão manso, tão tranquilo. Ele tinha a beleza das árvores. estava reconciliado dom a vida. Então os pássaros fizeram ninhos nos seus galhos e os peixes comeram dos frutos que caíam na água"...

  Sejamos simples e calmos
  Como os regatos e as árvores,
  E Deus amar-nos-á fazendo de nós
  Belos como as árvores e os regatos, 
  E dar-nos-á verdor na sua primavera,
  E um rio aonde ir quando acabemos!...
                 (Alberto Caieiro)

Alves, Rubem - O amor que acende a lua - Campinas, Papirus, 1999

Imagem: minha árvore mais amada, irmã da Senhora Paineira, que sempre tem o poder de melhorar meus dias, fotografada por Sueli Finoto em suas várias possibilidades
http://suelifinoto-artes.blogspot.com/2011/08/tres-momentos-de-uma-arvore.html

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Dois lados

As histórias têm como função ampliar nossas percepções e possibilidades de compreensão dos mundos. Esta, em especial, nos lembra que a realidade se constitui de vários ângulos. Será que abarcamos todos para julgar e condenar?






Dois lados

Os mantos coloridos dos dervixes, desenhados com propósito de ensino, e às vezes imitados como mera decoração, foram introduzidos na Espanha na Idade Média, da seguinte forma: um rei cristão, que gostava de detalhes pomposos e também se orgulhava de seu saber filosófico, pediu a um sufi, conhecido como El-Agarin, que o iniciasse em sua ciência.
- Nós lhe oferecemos observação e reflexão - disse-lhe El-Agarin - Mas antes deve aprender toda a extensão do seu significado.
- Já sabemos como prestar atenção. Temos estudado bastante, através de nossa tradição, todos os passos preliminares para chegar ao conhecimento- disse o rei.
- Muito bem - respondeu El-Agarin - Durante o desfile de amanhã daremos uma demonstração de nosso ensinamento para Vossa Majestade.
 Fizeram-se os preparativos, e no dia seguinte os dervixes do 'ribat'( centro de ensino) de El-Agarin desfilaram pelas ruas estreitas da cidade andaluza. O rei e seus cortesãos estavam postados em ambos os lados do trajeto: os nobres à direita, os cavaleiros à esquerda.
Quando a procissão terminou El-Agarin se dirigiu ao rei e disse:
- Por favor, majestade, pergunte aos fidalgos do lado esquerdo de que cor era o manto dos dervixes.
Todos os cavaleiros juraram pela escrituras e por sua honra que as vestimentas eram azuis.
O rei e os nobres se mostraram surpresos e confusos. Aquela não era, de modo algum, a cor que tinham visto.
- Todos nós vimos perfeitamente que usavam mantos castanhos- disse o rei - E entre nós há homens muito respeitados, homens de grande santidade e fé.
O rei ordenou que todos os cavaleiros se preparassem para ser castigados e degradados. Os que tinham visto os mantos castanhos foram separados: seriam premiados. O processo durou algum tempo, findo o qual o rei disse a El-Agarin.
- Que feitiçaria você fez, homem malvado? Que atos do demônio são os seus que podem fazer com que os fidalgos mais honrados do cristianismo neguem a verdade, abandonem suas esperanças de redenção e traiam nossa confiança, ficando incapacitados para a batalha?
- Na metade visível do lado em que estávamos- disse o sufi - os mantos eram de cor castanha. Na outra metade eram de cor azul. Sem preparação, sua predisposição o induz a enganar-se a sim mesmo e a interpretar-nos mal. Como podemos ensinar a alguém nestas circunstâncias?

Histórias da Tradição Sufi- Rio de Janeiro: Edições Dervish- Instituto Tarika, 1993

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Sobre bençãos....

Quando muito pequena, antes de dormir, minha avó ou minha tia me contavam histórias e cantavam canções de ninar. As histórias me comoviam e tocavam tanto, principalmente se alguém morria como a pobre cigarra deixada no frio. Logo perceberam que ou não contavam tais partes ou mudavam os finais se quisessem que eu sossegasse.  Cresci num mundo simbólico onde tudo era possível. Mas além deste carinho todo, o que mais me reconfortava eram as bençãos que me diziam antes de adormecer. Aprendi desde cedo que tais palavras têm, em si, um poder de criar mundos e nos proteger dentro deles. Não que seja um escudo contra qualquer coisa, mas como mobiliza nossa psique a trabalhar - isto descobri mais tarde - pode  chamar à luz partes nossas das quais sequer desconfiamos possuir. Clarissa Pínkola fala desta necessidade e destas possibilidades...


Receber a "benção" para viver de verdade...Às vezes passamos toda a nossa vida à espera da "benção", daquela que abra totalmente os portões: "Ande, sim, seja a força que você está destinada a ser...Ande, sim, viva como um ser pleno o tempo todo, até os seus limites mais distantes."
Uma benção não faz com que você ganhe alguma coisa, mas, na verdade, faz com que você use alguma coisa- algo que você já possui -, o dom que nasceu junto com você no dia em que você chegou à Terra. Uma benção é para que você se lembre totalmente de quem é, e faça bom uso da magnitude que nasceu embutida no seu eu precioso e indomável...

E termina com uma máxima que dá o que pensar:

"Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem."


Que sempre abençoemos e sejamos abençoados!!!!

Estés, Clarissa Pínkola - A ciranda das mulheres sábias: ser jovem enquanto velha, velha enquanto jovem - Rio de Janeiro: Rocco, 2007

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Quando descobri Alberto Caieiro senti que encontrei parte de minha alma. Antes, apaixonada pelo sarcasmo, pela dor e ironia de Álvaro de Campos, pude descansar tranquila e demoradamente nas imensas paisagens, nos rios, nas nuvens, nos girassóis... Aprendi a contemplar sem muita filosofia. Gracias, querido mestre Caieiro!



XL do "Guardador de Rebanhos

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo 
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas uma borboleta
E a flor é apenas flor.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Em 2012 brilhe!

Para começar bem este ano o único desejo e trabalho que vale a pena ter é de nos tornarmos nós mesmos com toda a dor e delícia que há nesta jornada. Nelson Mandela nos fala a respeito num texto maravilhoso que me foi passado por minha grande amiga e companheira de aventuras mitológicas , Cris Balieiro:




" Nosso medo mais profundo não é sermos inadequados.
  Nosso medo mais profundo é sermos poderosos além da medida.
  É nossa luz, não nossa escuridão o que mais assusta.
  Nós nos perguntamos: quem sou eu para ser brilhante, atraente, talentoso, fabuloso?
  Na verdade, quem é você para não ser?
  Você é uma criança do Espírito.
  Você, pretendendo ser pequeno, não serve ao mundo.
  Não há nada de iluminado no ato de se encolher para que os outros se sentam seguros ao seu redor.
  Nascemos para manifestar a glória do Espírito que está dentro de nós.
  E, na medida que deixamos nossa luz brilhar, damos permissão para os outros fazerem o mesmo.
  À medida que liberamos nosso medo, nossa presença libera outros."
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