segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Ampulheta


Será que no instante em que meu coração
Mudar a batida você se aperceberá?
Aquele exato instante em que as órbitas celestes
Alterarem seu rumo e eu, errática,
Voltar a girar em torno de meu próprio eixo.
Será?
Que teus olhos sempre desatentos irão notar
Que já não podem contemplar as belezas das
Paisagens que me comovem?
Que teus ouvidos seletivos irão perceber
Que não te conto mais histórias de amor
Com finais felizes e príncipes
Teus velhos parecidos?
Que tuas vísceras irão sentir que não mais
Compartilho poemas que transtornaram minhas entranhas ?
Que teu corpo pressentirá que jamais conhecerá
A macia chama do meu, uma vez que os possíveis se
Desfizeram num infinito rosário de impossibilidades?
Será?
Pior cego é aquele que não sentiu.
Pior surdo é aquele que não viu.
Pior solidão é daquele que nunca amou.

E caiu o último grão da areia...








Vincent e a clínica de olhos


Era segunda feira. Madrugada. Não me lembro o motivo, mas minha tia tinha de fazer um exame oftalmológico num posto do INSS. Talvez uma perícia. Nestes casos há que se chegar cedo. Bem cedo.Para se ter mais tempo para esperar, para se sentir mal, quase sem dignidade.Chegamos um pouco antes de hora agendada.
Meu Deus, que mar de gente!
Alguém indicava uma sala para triagem e depois espera, espera e mais espera. Fico a observar as pessoas apinhadas dentro de uma sala cheia de cadeiras.Algumas nitidamente com olhos doentes . Outras, nem tanto. Nas paredes alguns quadros pendurados, uma reprodução de Van Gogh.
As atendentes chamavam sem parar: "João Francisco dos Santos... Minervina Ferreira... Pedro França..." Algumas vezes o nome era ouvido e a pessoa parecia não se reconhecer, não ter forças para se mover. Levantavam-se como zumbis e dirigiam-se ao guichê. "Sala 47".
Pude ouvir algumas conversas perdidas em que as pessoas sequer sabiam o número de seus documentos que esqueceram em casa e logo eram despachadas. Teriam que começar tudo de novo. Depois de preencher a detalhada ficha, voltava-se a sala para aguardar mais.
O exame, por fim, era feito numa sala meio sombria onde as pessoas entravam e eu tinha a sensação que nunca mais saíam. Comecei a fantasiar que eram abduzidos ou coisa semelhante.
Um senhorzinho ao meu lado teve uma crise. Diabético, tomara insulina e nada comera. Ao menos foi atendido prontamente.
Aos poucos a sala começava a esvaziar. Muitos contavam conformados que ali já chagaram às 4 da manhã para sair às 3 da tarde. Minha tia se impacientava. Quando sairia o resultado! Eu trocava olhares de mútua comprensão com o senhorzinho diabético que também aguardava seu resultado.
De repente o Sr. João Francisco dos Santos, muitas vezes chamado, se deparou com o Van Gogh. Contemplou o quadro por um tempo, meio de longe. Chegou mais perto e tocou a gravura. Tateou cada centimetro como que hipnotizado. Seus olhos prejudicados buscando captar a grandeza do pintor. Passou uma eternidade ali, a tocar, a olhar. Eu o observava atenta. Senti uma leve brisa dentro daquele inferno interminável. Ele, pressentindo meu olhar, afastou-se constrangido.
Limitei-me a sorrir. Um rasgo de beleza, por seus olhos percebido, nos devolveu a humanidade.





domingo, 27 de fevereiro de 2011

Sobre encontros...


Há alguns anos conheci meu mestre contador de histórias. Eu o chamo mestre. Ele, tenho certeza, não aceitaria o título. Muito dele tinha ouvido falar e esperava ansiosamente conhecer. Num encontro promovido por outro mestre, o Elias, finalmente deparei-me com a figura. Passei quase todo o tempo a esperar que se dignasse a contar alguma história, pequena que fosse. Nada.
Até que na última noite ele me chamou, sentou-se numa poltrona, eu na da frente e começou a contar...Surgiram princesas, lobos, djins e muito mais. Eu , como uma criança que enfim ganhou o brinquedo, quase não conseguia ouvir de tanta alegria. Foi mágico...
Fizemos muitas coisas juntos e ele me indicou o que passaria a ser a minha Bíblia de contadora. De Clarissa Pínkola Estés, "Mulheres que correm com os lobos". Disse que eu seria transformada pela Mulher Esqueleto. Tenho sido desde então...
O livro é tão recheado de contos e possibilidades, que merece ser lido várias vezes, inteiro, ou aos pedaços. A cada vez revela novas paisagens internas, enriquecendo nossa jornada.
Compartilho um trecho que sempre me inspira:
" Diz-se que tudo que procuramos também está à nossa procura; que, se ficarmos bem quietos, o que procuramos nos encontrará. Ele está esperando por nós há muito tempo. Depois que ele aparecer, não devemos fugir. Descansemos. Vejamos o que acontece em seguida".

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A outra face da raiva


Existem alguns filmes despretensiosos que podem nos fazer refletir sobre como levamos nossas vidas. Este é um dos meus preferidos. Joan Allen, uma mulher tranquila e
equilibrada, se depara com o desaparecimento de seu marido. Acredita que ele tenha fugido com a amante. Sofre, a partir desta certeza, uma forte transformação emocional tornando-se raivosa e amarga. Passa a atormentar as quatro filhas fazendo de suas vidas um inferno.
Surge na história um vizinho charmoso mas complicado que com ela tenta um romance. Impossibilitada por sua ira de mulher abandonada não consegue curar suas feridas e refazer a vida com o bonitão Kevin Costner.
O final é surpreendente e nos faz questionar sobre quais certezas construímos nossos mundos. Vale a pena conferir.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Espera



Ela, a princesa encantada pelos distantes verdes olhos do guerreiro perscrutava, silente, o mar em busca de vida. Reconhecia no mais discreto movimento o coração sobrevivente.
Sua fé atravessou os tempos, sobrepujou imensas extensões gélidas. Por vezes, quase a desistir, ouvia a eterna voz dentro do peito.
Um dia, entretanto, percebeu que envelhecera à beira mar. Ele, o guerreiro, há muito carecia da coragem para a única batalha necessária.
Neste momento ela, princesa, desencantou.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Tecer era tudo o que fazia...


Certo dia um grande amigo meu trouxe uma cópia desta história para mim. Não sabia de quem era pois também tinha recebido de alguém. Fui pesquisar e descobri que era da maravilhosa contadora de histórias, Marina Colasanti. Os contos tradicionais partem da oralidade dos povos transmitindo verdades profundas das diferentes culturas. Por vezes, contadores sensíveis conseguem captar estas verdades criando novas histórias que trazem em si um gosto de eternidade. Marina é uma destas e este conto, em especial, pode iluminar nossa jornada.

A Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte


COLASANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. 6. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Afrodite


Afrodite, para os gregos, ou Vênus , para os romanos ficou conhecida como a deusa do amor e da beleza e talvez seja uma das mais comentadas do Olimpo.
Nascida da espuma formada pelo sêmen do pênis de Urano decepado por Cronos lançado no mar. Surgiu, magnífica, das águas e foi levada pelo vento Zéfiro para Chipre. Quando chegou ao Olimpo causou uma grande comoção por sua beleza estonteante e sua atenção passou a ser disputada por todos os deuses. Como ela parecesse não se comover com este assédio, Zeus para puní-la pela indiferença a fez se casar com Hefesto, o coxo ferreiro divino. Entretanto, ela teve inúmeros amantes tanto divinos quanto mortais.
Afrodite é muito requisitada pelas mulheres que usualmente lhe pedem favores amorosos. Grande engano! Em várias histórias vemos a deusa atendendo a pedidos de homens apaixonados que querem conquistar a amada. Transforma Galatéa, a estátua perfeita por quem o escultor Pigmalião se encanta, em mulher de carne e osso para que possam se amar. Cria uma estratégia para que Meleagro supere a intocável Atalanta na corrida e assim venham a se casar.
Outro grande equívoco é reduzí-la à deusa que pode ensinar as artes da sedução. Afrodite a ninguém seduz, mas a todos afeta pelo magnetismo natural da essência do Feminino bem encarnado. Aberta aos encontros transformadores que os amores proporcionam, se banha nas águas do mar ao fim destes e emerge renovada, íntegra.
Esta é a dádiva que ela pode oferecer. Transfigurar a mulher em si própria, trazendo à luz a beleza e o brilho que o prazer de estar viva transmite.
Mais do que fazer qualquer mortal por nós se apaixonar ela nos visita com a imensa amplitude de sermos plenas e encantadas com a aventura que é viver. Tudo, até o amor... e isto é irresistivel!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Bilhete de despedida

Peço-te que me perdoes
por nada mais ter a dizer.
Concluo tristemente que
ao dizer isto, disse muito.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Manual da Auto Atrapalhação

Se você não leu, deve ler. Mais fácil de por em prática do qualquer livro de Auto Ajuda surge este revolucionário guia para tornar sua vida miserável, com ansiedade, frustração e angústia imediatas.

Retomando o primeiro tópico:

BUSQUE A PERFEIÇÃO

Depois que você se atormentou para ter o corpo de seus sonhos, saliente este velho receio que existe no âmago de seu ser: o medo de errar. Afinal você TEM que ser o MÁXIMO e para tanto NUNCA pode cometer nenhum equívoco. Pense bastante antes de falar porque existe a palavra certa para que você cultive esta imagem de sabedoria única. No trabalho revise tudo o que fizer pelo menos 10 vezes. Acredite que para chegar a este pedestal que você tanto deseja não poderá experimentar fazer nada que você não tenha absoluta certeza de que será o melhor já feito nesta terra.
Aqui entra uma personagem central para sua infelicidade: um ferrenho crítico interior. Daqueles que não deixe passar nada e em hipótese alguma esteja satisfeito. Elogios nem pensar, reconhecimento só dos outros. Ouça com atenção este seu companheiro interno de todas as horas.
Logo você perceberá que dúvidas sempre virão antes de qualquer tarefa. Falar em público será uma missão impossível. Muitos de seus projetos serão descartados por medo de que não sejam do nível que você espera. Os que forem executados causarão gastrites e úlceras de tanta ansiedade na realização.
Talvez, se você levar esta busca às últimas consequências, até consiga chegar à imobilidade quase que total e à uma doença fatal.
Isto sem falar no mal que causará a todos os seus relacionamentos. Mas isto fica pra próxima...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Paciência

Numa viagem de livros, paineiras e trilhas encontrei esta frase de Rilke no livro " A virgem grávida" da maravilhosa analista jungiana Marion Woodman:

"Tenha paciência com tudo o que ainda não tiver tido solução em seu coração e tente amar às próprias indagações como aposentos trancados, e livros que são escritos em língua muito exótica. Não busque as respostas que não lhe podem ser dadas, porque você não seria capaz de vivê-las. E a questão é viver tudo. Viva as questões agora. Talvez você então vá aos poucos e sem perceber vivendo até que num dia ainda longínquo terá chegado à resposta". Carta a um jovem poeta

Virtude difícil a paciência...Ainda mais quando é com nossas ignorâncias e ansiedades.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Fragmento de um amor desperdiçado

Tão altivos eram e tão imensamente fortes que esconderam sua fraqueza em se amar. Este repentino amor jamais poderia ser provado apesar de transbordar nos gestos e nos olhares.
A cada dia duelavam para demonstrar sua insensilibilidade e frieza. Até que esgotados e vencidos, a vida deles se cansou e os separou.
Malditos de sua própria impossibilidade. Para sempre a olhar para trás. A ansiar por tudo que não foi vivido. A lamentar a grandeza do inútil orgulho preservado. Eternamente fracos e arrependidos.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Lua cheia e o boi de Mia Couto


Estou terminando de ler "Terra Sonâmbula" de Mia Couto, escritor moçambicano que, como poucos, domina a arte de contar histórias. Numa terra devastada por mais de vinte e cinco anos de guerras e guerrilhas, um velho e um menino perambulam pelos escombros do que um dia foi um país. Numa atmosfera de sonho temos narrativas de mitos e tradições das tribos locais mescladas às paisagens desfeitas pelas guerrilhas.
Encantou-me especialmente a história de um boi, parecido com qualquer outro de sua espécie, que começou a ficar estranho e estranho, O pastorzinho, que narra o acontecido, passou a observá-lo mais de perto até perceber que aqueles olhos sempre lânguidos ficavam a seguir uma garça que perto de suas pastagens vivia. O boi, que já era um tanto distraído do ofício de ruminar, ficava horas na contemplação da ave. Numa noite de Lua Cheia, como a de hoje, o menino presenciou o mais inusitado acontecimento. O mamífero começou a mugir para a Lua com tanto sentimento que seus mugidos foram aos poucos se tornando parecidos com os sons feitos pelas garças. O próprio boi foi se transformando até que garça também ficou. Assim metamorfoseado procurou sua amada e o namoro durou até a aurora. Ao nascer do Sol ele voltava à sua antiga forma.
Este romance durou tempos até que a Lua, sabe-se lá porque, escondeu-se de nosso amigo por meses. Ele preso em sua "bovinidade", impossibilitado de visitar sua garça, foi definhando, definhando até à morte.
História bela e triste. Como convém às grande histórias de amor...

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Maya

Chegamos de novo à quinta feira. Dia de histórias...
Não me lembro da primeira vez em que ouvi este conto, nem da pessoa que contou. A história em si foi tão tocante que passeia a contá-la tão logo tive oportunidade. Li e ouvi várias outras versões, todas muito belas. Com a licença poética dada aos contadores permito-me apresentar a minha
"Maya e Narada":

Num tempo em que não era tempo, caminhava pela Índia um homem santo chamado Narada que era fervoroso devoto de Vishnu, o deus que a tudo mantém. Ao morrer o sábio foi-lhe dado conversar face a face com o deus. Vishnu, que amava muito aquele homem tão piedoso, concedeu-lhe a honra de perguntar o que desejasse. Mais que depressa Narada confessou que gostaria que lhe fosse dado entender o que é Maya, indagação que há muito tempo lhe angustiava a alma.
O deus lhe respondeu que tal conhecimento era expressamente vedado aos homens,mesmo os deuses não tinham total compreensão de Maya. Narada inconformado, tanto pediu, tanto insistiu que Vishnu mostrando-lhe um lago que estava bem ao lado de onde conversavam, lhe ordenou:
-Vai e mergulha neste lago!
E o homem santo assim o fez.
Nasceu uma bela menina, filha de um poderoso rei e de sua amada rainha, que há muito desejavam uma filha, uma vez que tinham sete filhos, todos homens belos e fortes. A menina cresceu cercada de todo amor, cuidados e riquezas. Cada minímo desejo seu era prontamente satisfeito e ela não conhecia tristeza, dor ou frustação. Tornou-se uma belíssima jovem, gentil e de bom coração. Ao chegar a idade de casar-se foi apresentada ao príncipe do país vizinho que lhe fora prometido. Era o mais belo, forte e corajoso. Assim que se viram foram tomados de profunda comoção, apaixonaram-se completamente. Casaram-se e viveram dias de intensa felicidade. Tiveram muitos filhos e filhas.
Logo seu marido tornou-se rei e reinou com bondade e justiça. Mas ventos sombrios sopraram por aqualas terras. Houve um grande desentendimento entre o rei, seu pai e o rei ,seu marido, dando início à uma guerra sangrenta. Do campo de batalha chegavam sucessivamente notícias das mortes de seus queridos: o irmão mais velho, o filho do meio, o pai, mais um irmão, outro filho, o marido...Até que desesperada a rainha resolveu ir até o lugar onde se travava a luta e chegou a tempo de ver seu filho mais jovem, o mais querido, ser transpassado pela lança de seu irmão amado. Tomada de intensa dor a rainha tomou seu filho aos braços e caminhou para a pira funerária do campo entregando-se às chamas.
Neste momento Narada saiu do breve mergulho no lago.
Vishnu lhe disse:
- Esta é minha Maya!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Hera uma vez



Numa festa à fantasia em Taubaté o modelito que maior sucesso causou foi uma senhora de roupão velho, creme no rosto, bobbies no cabelo e um rolo de macarrão em punho. Dona Hera.
Grande injustiça!!!
Não se revela a intimidade da Deusa impunemente.
Se entendermos um pouco o que estava acontecendo naqueles tempos de Olimpo poderemos até sentir uma pitadinha de simpatia por ela. Até a civilização grega a Deusa reinava poderosa em todas as culturas. Observação simples da natureza: desde sempre os humanos nascem de um ventre de mulher. Nada mais justo do que venerar à Mãe em todos os seus aspectos.
Porém chegou um novo tempo e uma nova visão de mundo onde o Pai prevaleceria. Se estudarmos a fundo os mitos gregos veremos a dominação do divino masculino avançando nos terrenos daquela que até então ocupava o lugar de honra nos cultos.
Hera é um dos exemplos máximos disto. Casa-se com Zeus e tem que ser submissa a ele. De protagonista à coadjuvante, passa a ter poder através da posição de esposa e é este poder subalterno que defende com unhas e dentes. O grande Deus dos raios, como sabemos, não podia ver um rabo de saia sem colocar a sua marca. Teve várias amantes sempre deixando um rastro para que a esposa descobrisse e retaliasse. Ah! Isto ela fazia com muito gosto. Perseguia mulheres e filhos ilegítimos com requintes de crueldade. Pergunto-me sempre se algum dia ela levantou a hipótese de ter se casado com um canalha. Deus me perdoe!!!
Encontrei várias Heras pela vida. Outro dia até sonhei com uma delas. Em algum momento encontraram um homem pra chamar de Seu , lhes agregar valor e passam a tratá-lo como propriedade inalienável. Maldizem as mulheres que seriam responsáveis por todas as transgressões masculinas desde Eva. (Ops, misturei mitologias). Todas são rivais e inimigas em potencial. Desconfiadas e infelizes. Esquecidas de seu poder no mundo. Inevitavelmente traídas por si mesmas. Pobres Heras!
Apesar de compadecida devo advertir às Afrodites de plantão: nunca subestime o poder de uma Hera. Ela pode te transformar em cinzas. Mera lembrança.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Coisas a fazer antes de morrer

Ser vulnerável
Ser portal
Ser menina
Ser fio d'água
Ser velha
Ser semente
Ser estrela
Ser vôo e queda
Ser silêncio
Ser canto
Ser morada
Ser passagem
Ser folha
Ser húmus
Ser virgem
Ser entrega
Ser mensagem
Ser manhã
Ser ...


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Manual da Auto Atrapalhação


Livros de Auto Ajuda existem aos montes e são vendidos às pencas.
Nós, humanos, buscamos incessantemente fómulas mágicas que deveriam melhorar nossas vidas O problema com os livros é que, em sua maioria, propõem mudanças dificeis de empreender. A euforia quando se compra e começa a ler vai se transformando em desalento assim que se percebe a grande empreitada e as frustrações do caminho.
Nossa proposta revolucionária é apenas descobrir nossos recursos escondidos que utilizamos sem nos dar por isso.
Descobrir e ressaltar crenças, idéias, sentimentos e ações que irão tornar sua vida cada vez pior.
Surge portanto o novíssimo:

MANUAL DA AUTO ATRAPALHAÇÃO

Dicas fáceis e infalíveis para transformar a sua vida numa complicação constante

Comecemos pois por uma sugestão que certamente dará origem a muita dor de cabeça:

BUSQUE A PERFEIÇÃO

Este será um tópico que discutiremos longamente.

Voltemos nossa atenção para nosso eterno companheiro: o corpo.
Nunca, jamais, em tempo algum, aceite ser do jeito que é. Fique diariamente na frente do espelho e descubra todos
os seus defeitinhos. Crie mentalmente um ideal de como você gostaria de ser. Mulheres, sejam Angelina ou Gisele. Homens, Brad Pitt ou Robert Pattinson. Se não tem o corpo das revistas ou do cinema, faça qualquer negócio para chegar a tê-lo.
Vale tudo. Jejum,malhação, plástica, botox. Procure anúncios de promessas milagrosas e experimente. Desrespeite todos os limites e nunca relaxe.
Se, enfim, conseguiu o físico dos seus sonhos, mantenha-se alerta pois a gravidade e o relógio estão contra a sua pessoa.
Trate, portanto, seu corpo como um inimigo e ele se comportará como tal proporcionando uma infinidade de problemas e preocupações que preencherão sua vida.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Girassol


Houve um dia em que encontrei um girassol. Foi um encontro inesperado, eu buscava flores para trazer graça e beleza às mulheres que iriam atravessar aquele rio comigo.
Assim que o vi entre tantos vasos ele me enfeitiçou. Era diferente de todos os outros, tinha um brilho especial. Hipnotizou-me.
Eu o comprei, coloquei em meu colo e trilhamos um longo caminho a nos olhar embevecidos. Enamoramo-nos. Era belo! Era forte!
Minha companheira de travessia logo percebeu nosso namoro: " Ele parece que fala com você!"
Ao chegar no local do Encontro de mulheres eu arranjei um lugar de honra para meu novo amor, para que Ele com seu poder solar nos trouxesse sua força vital.
A cada instante eu o contemplava, orgulhosa. Era o Meu girassol. Só Meu.
As mulheres começaram a chegar e unânimes teciam elogios a sua beleza:
" Que girassol maravilhoso!"- dizia uma.
"É lindo!" - acrescentava outra.
"Parece ter luz própria!"
Eu balançava a cabeça a concordar feliz.
Meu amor impressionava a todas.
Muito vivemos naquele dia: de história em história, de dança em dança, com risos e lágrimas caminhamos para mais perto de nós mesmas.
Ele, de seu lugar, a tudo observava em silêncio por mim apaixonado.
Na despedida, eu já com ele em meus braços, uma das mulheres me diz:
" Você vai me dar este girassol?!"
Eu, aturdida pela pergunta inconveniente:
"Como? Eu dar o Meu girassol?!!De jeito nenhum. Nós nos amamos!"
Ela insistindo;
"Por favor!!!"
Eu, começando a ficar brava:
" Você não entendeu. Olhe para ele. EU O ENCONTREI. Estamos encantados um pelo outro. ELE É MEU!!!"
Assim prosseguiu a discussão por um tempo, até que ela vencida disse:
" Bem, quando ele morrer você me manda as sementes para eu plantar?"
Senti naquele instante um fio de dor percorrer minha alma diante da dura realidade. Eu o levaria para um apartamento onde duraria uma semana ou duas. Sua luz se apagaria lentamente, sua beleza murcharia e só lhe restariam as tais sementes que eu jamais plantaria.
Ela , a usurpadora, o transplantaria em seu quintal onde teria boa terra e muito Sol. Ele seguiria vivendo e produzindo...
Eu o olhei ainda uma última vez: altivo, luminoso, pleno de vida. Com lágrimas nos olhos o entreguei para que sua força e beleza se perpetuassem para além de mim.
Talvez naquele momento eu tenha sido visitada pelo verdadeiro amor...




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mais uma de amor...

Hoje ouvi uma história de amor, com todos elementos que tem de ter uma história para ser uma história de amor. Nesta um homem de coração anestesiado, esbarra numa mulher num bar de uma cidade distante da dele. Acostumado a entrar e sair incólume destes encontros beija desavisadamente a jovem. Neste momento acontece o inesperado. Aquele não era um beijo qualquer. Provava um sabor novo e viciante. Ficou imediatamente dependente . E os deuses ajudaram, era uma noite de Lua cheia em que o sangue ferve e tudo pode acontecer.
Passearam pela cidade estranha. Depois de conhecer a moça tudo lhe parecia ter uma beleza que ainda não tinha percebido. Foram para um mirante e conversaram até o nascer do Sol. Separaram-se já saudosos, ansiando pelo momento de se encontrar de novo. Do que ele se lembra foram dias encantados. Tinha certeza absoluta de que foram feitos um para o outro.
Voltou para sua cidade e haja Skype, MSN, email, telefone, torpedo...Nada dava conta de tanto a dizer.Ele foi, ela veio e a paixão só fazia aumentar.
Até que um dia, e este dia sempre chega, ela se mostrou estranha, ou assim ele a sentiu. Não tinha mais aquele brilho nos olhos, nem a voracidade no corpo. Nosso rapaz começou a concordar com Freud que dizia que a situação em que estamos mais vulneráveis é quando estamos amando.
Toda alegria se esvaiu dando lugar ao medo, à suspeita e à incerteza. A imaginação preenchia as lacunas de resposta imediata.
Cada um cumpria seu papel com maestria. Ele confuso, ela ambígua. As línguas que tanto prazer lhes deram já não se compreendiam. O desespero foi chegando e se instalando sorrateiro.
Chegaram, enfim, à conversa final com todos os elogios costumeiros de quem quer se livrar da culpa de deixar o outro ali num desamparo visceral. " O problema sou eu!" Para ele isto era mais que fato, era sensação...O problema é que sem ela não conseguiria mais respirar. Seu amor como um vírus tinha se instalado em seus pulmões.
Não teve jeito. Nada a comoveu. Partiu, deixando terras devastadas atrás de si.
Ele apesar de desolado, não morreu de tuberculose ou coisa assim. Passa dias rememorando cada palavra, gesto, olhar, beijo, transa, e por vezes, recusa, distância, ferida e dor.
Parece, entretanto, que não se arrepende de absolutamente nada. Faria tudo de novo. E fará.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Mushkil Gusha

Hoje é quinta-feira. Dia muito especial para os contadores de histórias da tradição sufi. Reuniões são feitas por toda a parte, histórias são compartilhadas. Mas existe uma em especial que só se conta às quintas. Quando há muito tempo ouvi falar dela fiquei curiosa esperando a oportunidade de estar com alguém que pudesse me contar no dia determinado.
Meses se passaram e a curiosidade só fazia aumentar. Até que numa noite de eclipse total da Lua em Taubaté, Mauricélia enfim acabou com o mistério. Ouvi atenta mas era muito longa e cheia de detalhes pra se guardar de uma vez só. Muitas outras quintas vieram e a história se fez presente em situações inusitadas e mágicas.
Tempos depois um grande amigo me deu um livro que,além de outras histórias ensinamento, trazia o conto. Ficou fácil...
Agora eu a encontrei num site de histórias. Compre algumas tâmaras e aproveite. Hoje é dia de Mushkil Gusha, o Dissipador de toda a dificuldade.

A História de Mushkil Gusha

Era uma vez, a menos de mil milhas daqui, um pobre lenhador viúvo, que vivia com sua pequena filha. Todos os dias costumava ir às montanhas cortar lenha, que levava para casa e atava em feixes. Depois da primeira refeição, caminhava até o povoado mais próximo, onde vendia a lenha e descansava um pouco antes de voltar para casa. Um dia, ao chegar em casa, já muito tarde, a menina lhe disse:

- Pai, de vez em quando gostaria de ter uma comida melhor, em maior quantidade e mais variada.

- Está bem, minha filha - disse o velho -, amanhã levantarei mais cedo do que de costume, irei mais alto nas montanhas, onde há mais lenha, e trarei uma quantidade maior do que a habitual. Voltarei mais cedo para casa, atarei os feixes mais depressa e irei logo ao povoado vendê-los para conseguirmos mais dinheiro. E lhe trarei uma porção de coisas deliciosas.

Na manhã seguinte, o lenhador levantou-se antes da aurora e partiu para as montanhas. Trabalhou arduamente cortando lenha e fez um feixe enorme, que carregou nos ombros até sua casa.

Ao chegar era ainda muito cedo. Então, colocou a carga no chão e bateu à porta, dizendo:

- Filha, filha, abra a porta. Estou com sede e fome; preciso comer alguma coisa antes de ir para o mercado.

Mas a porta continuou fechada. O lenhador estava tão cansado que se deitou no chão, ao lado do feixe de lenha, e logo adormeceu. A menina, esquecida da conversa da noite anterior, dormia profundamente.

Quando o lenhador acordou, algumas horas depois, o sol já estava alto. Bateu novamente à porta e disse:

- Filha, filha, abra logo. Preciso comer alguma coisa antes de ir ao mercado vender a lenha, pois já é muito mais tarde do que de costume.

Mas a menina que tinha esquecido completamente a conversa da noite anterior, tinha se levantado, arrumado a casa e safra para dar um passeio. Em seu esquecimento, e supondo que o pai já tivesse ido para o povoado, deixou a porta da casa fechada.

Assim, o lenhador disse a si mesmo:

- Já é muito tarde para ir à cidade. Voltarei para as montanhas e cortarei outro feixe de lenha, que trarei para casa, e amanhã terei carga em dobro para levar ao mercado.

O lenhador trabalhou duro aquele dia, cortando e enfeixando lenha nas montanhas. Já era noite quando chegou em casa com a lenha nos ombros.

Pôs o feixe atrás da casa, bateu à porta e disse:

- Filha, filha, abra a porta. Estou cansado e não comi nada o dia todo. Trago uma dupla carga de lenha, que espero levar ao mercado amanhã. Preciso dormir bem esta noite para recuperar minhas forças.

Mas não houve resposta, pois a menina, sentindo muito sono ao voltar do passeio, preparou sua comida e foi para a cama. A princípio, ficara preocupada com a ausência do pai, mas tranqüilizou-se logo, pensando que ele passaria a noite no povoado.

Cansado, faminto e com sede, vendo que não podia entrar em casa, o lenhador deitou-se novamente ao lado da lenha. Apesar de preocupado com o que poderia estar acontecendo com a filha, não conseguiu ficar acordado: adormeceu logo. Mas, como estava com muito frio, muita fome e muito cansado, acordou bem cedo na manhã seguinte, antes mesmo de o dia clarear.

Sentou-se, olhou ao redor, mas não conseguiu ver nada. Mas, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha. Pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:

- Depressa! depressa! Deixa tua lenha e vem por aqui. Se necessitas muito e desejas o suficiente, terás uma refeição deliciosa.

O lenhador levantou-se e caminhou na direção de onde vinha a voz. Andou, andou e andou, mas não encontrou nada.

Então sentiu mais cansaço, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperanças, mas isso não parecia tê-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também não o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu. Logo depois acordou novamente. Sentia frio e fome demais para poder dormir. Foi então que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pedira um tipo de comida diferente.

Mal terminou sua história, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se saísse do amanhecer, que dizia:

- Velho homem, velho homem, que fazes sentado aqui?

- Estou me contando minha própria história - respondeu o lenhador.

- E qual é?

O lenhador repetiu sua narração.

- Muito bem - disse a voz, e a seguir lhe pediu que fechasse os olhos e subisse um degrau.

- Mas não vejo degrau algum - disse o velho.

- Não importa, faz o que te digo - ordenou a voz.

O homem fez o que lhe fora ordenado. Mal fechou os olhos, descobriu que estava de pé e, levantando o pé direito, sentiu que debaixo dele havia algo semelhante a um degrau.

Começou a subir o que parecia ser uma escada. De repente os degraus começaram a mover-se - moviam-se muito rapidamente - e a voz lhe disse:

- Não abra os olhos até que eu ordene.

Não se passara muito tempo, quando a voz mandou que o velho abrisse os olhos. Ao fazê-lo, o lenhador achou-se num lugar que parecia um deserto, com um sol escaldante
acima dele. Estava rodeado de montes e montes de pedrinhas de todas as cores: vermelhas, verdes, azuis, brancas. Mas parecia estar só; olhou em volta e não conseguiu ver ninguém. Então, a voz começou a falar de novo:

- Apanha todas as pedras que puderes, fecha os olhos e desce os degraus.

O lenhador fez o que lhe mandavam e, quando a voz ordenou que abrisse os olhos novamente, encontrou-se diante da porta de sua própria casa. Bateu à porta, e a sua filha veio atender. Ela lhe perguntou por onde ele tinha andado, e o pai lhe contou o ocorrido, embora a menina mal entendesse o que ele dizia, porque tudo lhe parecia muito confuso.

Entraram em casa e a menina e o seu pai repartiram a última coisa que lhes restava para comer: um punhado de tâmaras secas. Quando terminaram a comida, o velho achou que estava novamente ouvindo uma voz, uma voz igual àque-la que o mandara subir os degraus.

- Embora ainda não o saibas - disse a voz - foste salvo por Mushkil Gusha. Lembra-te: Mushkil Gusha está sempre aqui. Promete a ti mesmo que todas as quintas-feiras, à noite, comerás umas tâmaras, e darás outras a alguma pessoa necessitada, a quem contarás a história de Mushkil Gus-ha. Ou darás um presente, em seu nome, a alguém que ajude os necessitados. Promete que a história de Mushkil Gusha nunca, nunca será esquecida. Se fizeres isso, e o mesmo fizerem as pessoas a quem contares a história, os que tiverem verdadeira necessidade sempre encontrarão seu caminho.

O lenhador então colocou todas as pedras que havia trazido do deserto num canto do casebre. Pareciam simples pedras, e ele não soube o que fazer com elas. No dia seguinte, levou seus dois enormes feixes de lenha ao mercado e os vendeu facilmente, por ótimo preço. Ao voltar para casa, levava para sua filha uma porção de iguarias deliciosas que ela jamais havia provado antes. Quando terminaram de comer, o velho lenhador disse:

- Agora vou lhe contar a história de Mushkil Gusha. Mushkil Gusha significa "O dissipador de todas as dificuldades". Nossas dificuldades desapareceram por intermédio de Mushkil Gusha, e devemos lembrá-lo sempre.

Durante uma semana o homem seguiu sua rotina. Ia às montanhas, trazia lenha, comia alguma coisa, levava a lenha ao mercado e a vendia. Sempre encontrava comprador, sem dificuldade.

Mas chegou a quinta-feira seguinte e, como é comum entre os homens, o lenhador se esqueceu de contar a história de Mushkil Gusha. Nessa noite, já tarde, apagou-se o fogo na casa dos vizinhos. E, como não tinham com que voltar a acendê-lo, foram à casa do lenhador e disseram:

- Vizinho, vizinho, por favor, dê-nos um pouco de fogo dessas suas lâmpadas maravilhosas que vemos brilhar através da janela.

- Que lâmpadas? - perguntou o lenhador.

- Venha cá e veja - responderam.

O lenhador saiu e viu claramente a variedade de luzes que, vindas de dentro, brilhavam através de sua janela. Entrou e viu que a luz saía do monte de pedras que havia posto num canto. Mas os raios de luz eram frios e era impossível usá-los para acender fogo. Então, tornou a sair e disse:

- Sinto muito, vizinhos, não tenho fogo - e bateu-lhes a porta no nariz.

Os vizinhos ficaram aborrecidos e surpresos e voltaram para casa resmungando. E aqui eles abandonam nossa história.

Rapidamente, o lenhador e sua filha, com medo que alguém visse o tesouro que possuíam, cobriram as brilhantes luzes com todos os trapos que encontraram. Na manhã seguinte, ao destampar as pedras, descobriram que eram gemas luminosas e preciosas.

Uma a uma, levaram-nas às cidades dos arredores, onde as venderam por um preço enorme. Então, o lenhador decidiu construir um esplêndido palácio para ele e sua filha.

Escolheram um lugar que ficava exatamente na frente do castelo do rei de seu país. Pouco tempo depois, um edifício maravilhoso estava construído.

O rei tinha uma filha muito bonita que uma manhã, ao acordar, viu o castelo, que parecia de contos de fadas, bem em frente ao de seu pai. Muito surpresa, perguntou a seus criados:

- Quem construiu esse castelo? Com que direito fazem uma coisa dessas tão perto do nosso lar?

Os criados saíram e investigaram. Ao regressar, contaram à princesa tudo o que conseguiram saber.

A princesa, muito zangada, mandou chamar a filha do lenhador. Porém, quando as duas meninas se conheceram e se falaram, logo tornaram-se boas amigas. Encontravam-se todos os dias e iam nadar e brincar juntas num regato que o rei mandara fazer para a princesa.

Alguns dias depois do primeiro encontro, a princesa tirou um colar lindo e valioso e pendurou-o numa árvore à beira do regato. Na volta, esqueceu-se de apanhá-lo e, ao chegar em casa, pensou que o tinha perdido. Refletindo melhor, porém. concluiu que tinha sido roubado pela filha do lenhador.

Contou tudo ao pai, que mandou prender o lenhador e confiscou-lhe todos os bens. O homem foi posto na prisão, e sua filha levada para um orfanato.

Como era costume no país, depois de algum tempo o lenhador foi retirado de sua cela e levado para praça pública, onde o acorrentaram a um poste, tendo pendurado ao pescoço um cartaz onde se lia:

"E isto que acontece a quem rouba dos reis."

A princípio, as pessoas juntavam-se à sua volta zombando dele e atirando-lhe coisas. O lenhador estava muito infeliz. Porém, como é comum entre os homens, logo se acostumaram com o velho sentado junto ao poste e lhe prestavam cada vez menos atenção. Às vezes lhe atiravam restos de comida, às vezes nem mesmo isso.

Uma tarde, ouviu alguém dizer que era quinta-feira. De imediato veio-lhe à mente o pensamento de que logo seria a noite de Mushkil Gusha, "O dissipador de todas as dificuldades", a quem há tanto tempo se esquecera de comemorar. No mesmo instante em que esse pensamento lhe chegou à mente, um homem caridoso que passava jogou-lhe uma moeda.

- Generoso amigo - chamou-o o lenhador - você me deu dinheiro que para mim não tem utilidade alguma. Mas se, em sua generosidade, puder comprar uma ou duas tâmaras e vir sentar-se comigo para comê-las, eu lhe ficaria eternamente grato.

O homem saiu e comprou algumas tâmaras, sentou-se a seu lado e comeram juntos. Ao terminar, o lenhador contou-lhe a história de Mushkil Gusha.

- Acho que você deve estar louco - disse-lhe o homem generoso.

Mas era uma pessoa compreensiva e também enfrentava muitas dificuldades. Ao chegar em casa, depois desse incidente, percebeu que todos os seus problemas estavam resolvidos. Isto o fez pensar mais seriamente a respeito de Mush-kil Gusha. Mas aqui ele deixa nossa história.

No dia seguinte, pela manhã, a princesa voltou ao lugar onde se banhara e, quando ia entrar na água, viu, no fundo do regato, uma coisa que parecia ser seu colar. Porém, no momento em que ia pegá-lo, espirrou, jogou a cabeça para trás, e viu que o que tomara por seu colar era apenas o reflexo dele na água. O colar estava pendurado no galho de uma árvore, no mesmo lugar onde o tinha deixado há muito tempo. Emocionada, apanhou-o e foi correndo contar ao rei o acontecido. Este ordenou que o lenhador fosse posto em liberdade e que lhe pedissem desculpas em público. Tiraram a menina do orfanato e todos viveram felizes para sempre.

Estes são alguns dos episódios da história de Mushkil Gusha. E uma história muito longa, que nunca termina. Tem muitas formas. Algumas nem sequer se intitulam A história de Mushkil Gusha. Por isso as pessoas não as reconhecem como tal.

Mas é por causa de Mushkil Gusha que esta história, em qualquer de suas formas, é lembrada por alguém, em algum lugar do mundo, dia e noite, onde quer que exista gente. Tal como sempre tem sido contada, assim continua-rá a ser contada eternamente.

Você quer repetir a história de Mushkil Gusha nas noites de quinta-feira e ajudar, assim, o trabalho de Mushkil Gusha?


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fahima

Sempre que ouço uma história pela primeira vez se ela me fizer vibrar eu sei que será minha amiga e virá sempre que eu a invocar. Pois histórias, são como entidades: possuem vida e vontade próprias. Se eu quiser contar uma apenas porque acho que vai cair bem geralmente a coisa sai meio sem graça, sem brilho e não cumpre a missão de tocar a alma de ninguém. Aprendi a ser humilde. Apenas uma "médium" de histórias.
Lembro-me da primeira vez que vi Regina Machado numa apresentação. Um espetáculo. Uma grande mestra de seu ofício. Narrou vários contos tradicionais e entre eles este que se tornou meu companheiro de muitas jornadas. Passei a contar de memória, meio que adaptando aqui e ali, até que o encontrei num antigo livro de Idries Shah em inglês. Fiz uma tradução introduzindo alguns elementos utilizados por Regina. Apresento-lhes a minha Fahima que "com as artes que só as mulheres têm" transformou mundos.

Fahima, a “Compreensiva”

Era uma vez, na cidade de Basra, uma jovem de extraordinária beleza e de
uma sabedoria ímpar. Sabia desvendar enigmas e resolver questões difíceis e
complicadas. Tinha igualmente o dom de penetrar profundamente na alma das
pessoas e compreendê-las a ponto de predizer exatamente aquilo que iriam fazer.

Seu nome era Fahima, a “Compreensiva”. Ela havia herdado uma grande fortuna,
e todos os jovens rapazes de sua cidade – bem como um grande número dos
velhos- gostariam de se casar com ela, boa parte pensando em desfrutar de sua
riqueza. Mulheres também buscavam sua amizade. Aqueles que não estavam
interessados em seu dinheiro eram curiosos a respeito da origem de tanta graça
e sabedoria; e Fahima se via sempre cercada por aduladores, pretendentes,
desocupados e pessoas que intentavam tirar algum proveiro dela.

A jovem passou a isolar-se e tornar difícil às pessoas ter acesso a ela. Certo dia,
quando estava no mais alto terraço de seu palácio, em silêncio contemplando os
últimos raios do Sol e o surgir da Lua,o príncipe de Basra que por ali passava a avistou
no exato instante em que a leve brisa lhe fez cair o véu. Ele se encantou com
tanta beleza e decidiu imediatamente desposá-la.

O príncipe acampou nas imediações do palácio de Fahima e levantou um cerco
ao seu redor. Cantou-lhe canções, fez demonstrações de luta, mostrava-se sempre
vestido com os mais esplêndidos trajes e lhe mandava poemas e declarações de
amor. Entre todas estas atividades ele achava tempo para caçar, praticar esgrima,
ir à cidade para inspecionar as últimas cargas que chegavam de terras distantes, e
se comportava exatamente como os príncipes de sua época.

Fahima, como sabemos, era sábia; e ela havia gostado do que vira e ouvira
do príncipe e o havia compreendido melhor do que ele mesmo poderia se
compreender.

Um dia,entretanto, ela saiu de seu palácio e se viu raptada e levada
ao castelo do príncipe; ela não se surpreendeu como alguns de nós teríamos nos
surpreendido. Quando ele a aprisionou numa masmorra sem nenhuma discussão
ela percebeu que o príncipe assim o fez porque tinha se convencido de que ela
não se casaria com ele se não mostrasse sua assertividade e força; porque como
vocês já devem ter percebido ele tinha o hábito de chegar a conclusões sobre
seus problemas sem suficiente reflexão.

Após alguns dias o príncipe foi até a cela onde aprisionara Fahima e lhe disse
através das grades:
“ Fahima, eu quero desposá-la. Sou rico, sou jovem, forte, belo e a tenho em
meu poder. Posso fazer o que bem quiser com você. Entretanto, eu só desejo
agradá-la e me tornar um marido interessado e devotado”.
A jovem lhe respondeu:

“ Nem por seu ouro, nem pelo mel;
não por persuasão, nem por coação;
não pela ira, nem pela presunção”.

Dia após dia o príncipe se dirigia à masmorra e uma conversa semelhante
acontecia. Ele desfiava todas as razões pelas quais qualquer mulher de juízo
aceitaria seu pedido, mas Fahima as rejeitava todas.
Finalmente outros assuntos começaram a ocupar-lhe a mente.
Depois de alguns meses decidiu viajar à Bagdá
e a novidade chegou aos ouvidos de Fahima pelas fofocas dos carcereiros.

Durante todo este tempo a jovem não ficara desocupada, mas lentamente havia
cavado um túnel e tinha os meios de escapar de sua prisão.

Tão logo o príncipe partiu, Fahima entrou em sua passagem secreta e se
encontrou em liberdade. Correu até seu palácio, equipou uma caravana com os
mais velozes cavalos de Basra e partiu imediatamente para a capital Bagdá,
chegando muito antes de noso indolente príncipe que se deteve várias vezes
pelo caminho divertindo-se em banquetes, caçadas outras coisas próprias dos
príncipes de seu tempo.

Quando ele enfim chegou à Bagdá visitou amigos, saiu a caçar com falcões e se
entreteve com toda a sorte de divertimentos comportando-se como os demais
príncipes faziam naqueles dias.

Certa tarde, passando por uma luxuosa mansão ele avistou uma bela jovem
olhando por uma janela. Disse consigo: “Esta adorável criatura é quase igual
a Fahima de Basra”. E ele acertou em cheio, pois era ninguém mais do que
a própria Fahima que, com as artes que só as mulheres têm com pós, henas,
cremes , perfumes e véus, se transformara numa outra mulher e se estabelecera
em Bagdá com o único propósito de se encontrar com o príncipe.
Este no mesmo instante fez-se apresentar à jovem e lhe disse: “Mulher, tu és a
mais bela que os meus olhos já contemplaram. Case-se comigo”.Ela aceitou e
eles se casaram. Fahima tornou-se uma princesa e deu à luz no devido tempo a
uma menina. O príncipe estava muito satisfeito.

Depois de um tempo, entretanto, ele decidiu sair a viajar novamente e partiu para
Trípoli. Fahima entristeceu-se profundamente, deixou sua filha com uma serva de
confiança e partiu também.

Chegou a Trípoli bem antes que seu marido, e imaginem, com as artes que só
as mulheres têm, se transformou numa outra mulher, alugou uma suntuosa casa
e esperou. O príncipe ao chegar a Trípoli passou a se divertir como antigamente
até que ao passar em frente a certa casa viu uma bela mulher contemplando o
crepúsculo. Fez-se introduzir à casa e ao se deparar com Fahima ( quem mais ?)
disse: “Mulher, tu és a mais bela que os meus olhos já viram. Case-se comigo.”
Mais uma vez se casaram. Ela teve mais um filho e nosso príncipe parecia muito
feliz.

Depois de alguns meses o desejo de aventuras cresceu novamente dentro do
peito do príncipe, ele embarcou num navio e partiu para Alexandria. Fahima mais
uma vez o seguiu, porém num navio mais rápido chegou antes e com as artes que
só as mulheres têm transformou-se ainda numa outra mulher. Ele lá chegando ,
um dia se deparou com aquela atraente mulher que passeava num jardim e lhe
disse: “Mulher, tu és a mais bela que os meus olhos ousaram contemplar. Case-se
comigo”. Casaram-se, mais uma criança nasceu e tudo parecia bem.
Após um ano ou dois, o príncipe começou a ficar inquieto, sentindo saudades de
sua terra natal. Partiu, então, de volta para Basra.

Fahima embarcou num navio veloz e alcançou
a cidade a tempo de estar novamente sentada em sua masmorra
no momento em que o príncipe chegou de viagem e foi imediatamente procurá-la.

Quando a viu , o príncipe começou, pela primeira vez, a sentir remorso e
vergonha. “Ah, Fahima!”, ele lhe disse, “eu ainda gostaria de me casar com você.
Eu te tratei muito mal deixando-a aqui encarcerada por tantos anos. Eu não sou o
mesmo homem que partiu. Sou ainda pior.Fiz coisas que não deveria ter feito. Não
sou digno de você e de fato, nem de outros dos quais você nada sabe”.
Fahima disse: “Você está pronto a me contar tudo o que aconteceu enquanto você
esteve fora?”
” Posso até contar”, disse o príncipe, “mas isto não fará nenhuma diferença. Sei
que você é sábia, mas mesmo assim não poderá pensar em algo para solucionar
meus problemas que criei por minha estupidez e falta de reflexão”.
Ela insistiu: “Se você me contar toda a história sem omitir um único detalhe eu
poderei sugerir algo”.
O príncipe então contou-lhe como ele havia encontrado e se casado com as belas
mulheres em Bagdá, Trípoli e Alexandria, como ele havia tido três lindos filhos e
abandonado todos e como gostaria de ter agido diferente.
“ Se não fosse por mim” , disse Fahima, “você teria feito estas coisas de forma
que não haveria volta. Se assim fôra, você não teria como ir além de sua própria
estupidez e outros teriam se ferido pelo seu egoísmo. Como de fato aconteceu, eu
tenho como reverter esta situação”.
“ O que está feito não pode ser desfeito”, disse o príncipe, “Quanto ao resto do
que você falou eu não consegui entender nada”.
“ Vá até à sala do trono”, disse Fahima, “e espere até que alguém seja anunciado
a sua presença. Alguém que você deve receber imediatamente”.

O príncipe fez exatamente o que ela pediu e depois de algum tempo Fahima
vestida ricamente e levando seus três filhos chegou aos portões do palácio e foi
introduzida à sala do trono.

Levou algum tempo para que o príncipe pudesse compreender que as QUATRO
mulheres eram de fato UMA e que as TRÊS crianças tinham UMA só mãe. Mas
quando ele percebeu o que Fahima havia feito apesar de tudo o que fizera com
ela , foi tomado por uma grande alegria e se tornou um novo homem.
Aquela foi uma família feliz.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

E se fez poesia...

Certo dia um velho amigo meu lançou um convite pela internet: Quem gostaria de fazer um curso para aprender a dizer poesia? A poeta capixaba, Elisa Lucinda, iria dar aulas nas tardes de sábado num teatro aqui perto de minha casa. Atendi ao chamado prontamente. Nem imaginava como poderia ser,mas poesia é sempre bom e la fui eu.
Além de mim várias pessoas haviam se disposto à aventura. Éramos por volta de trinta curiosos e ansiosos pela presença da mestra.
Ela chegou, carregada de livros e beleza. Auxiliada por duas fiéis escudeiras propôs que cada um escolhesse o poema que mais lhe tocasse nos livros que trouxera. Eram muitos: Drumond, Adélia, Pessoa e por aí vai... Depois de escolher deveríamos ler em voz alta. De forma alguma declamar como nas antigas fórmulas. Dizer como se conversássemos ao pé de um ouvido amigo, naturalmente, com a emoção contida na palavra mas sem afetação.
Neste instante instarou-se a magia: ouvir trinta poemas, entremeados de outros tantos que Elisa, Geovana e Emilene nos presenteavam, criou uma atmosfera encantada em que cada som parecia carregado de pleno sentido.
Minha alma sorvia ,sedenta, cada verso, cada estrofe. Uns eram sóbrios, outros divertidos e surpreendentes. Desvelavam mistérios do amor e desamor, da vida e da morte.
Ao acabar a aula, saindo à rua, meus olhos pareciam ver tudo poeticamente. As árvores, pássaros, Lua e até mesmo carros surgiam com uma nova luz. Estava em êxtase. Lembro-me de pensar que poderia viver assim para sempre. Sem de nada mais precisar. Repleta. Resplandescente como tendo contemplado a face de Deus.
Como tudo que começa, um dia o curso chegou ao fim, celebrado com uma grande apresentação.
Depois de repetirmos infinitamente nossos poemas eles se manifestaram íntimos de cada um de nós.
Desde então meu Caieiro me acompanha e meus olhos nunca mais voltaram ao normal.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Identidade

Certo dia acordei cismando com a estranheza de meu sobrenome. Assunto que quando criança me tomava de tempos e tempos. Cresci ouvindo grandes elogios ao caráter, honra e graça dos Ferreira, família a qual supostamente deveria pertencer. Como pois vim a me chamar Silva?
Confesso que nunca me senti à vontade com este nome tão genérico, mas era o que me cabia. Até eu me deter na razão de não ser chamada pelo nome de família e me intrigar com a origem do tal Silva que me acompanhava. Ancestrais todos idos, como sabê-lo?
Pensei que meu último antepassado querido deste lado poderia me esclarecer. Liguei imediatamente e soltei a pergunta à queima roupa. Meu velho tio divertiu-se muito, riu bastante até que depois de fazer prometer discrição narrou a seguinte história:
Quando jovens ele e seus irmãos, meu avô arrendou terras de um fazendeiro. A família toda trabalhava arduamente na terra. O proprietário da fazenda era também o pai de uma linda moça: : " Uma morena danada de linda!". Um de meus tios enamorou-se perdidamente por ela. Meu pai, que em tudo imitava o irmão, encantou-se também. Creio que na época todos perceberam os olhares famintos de meu tio. Por onde ele passava todos comentavam: "Lá vem o Evaristo Ferreira da Sílvia!" Se chegavam a um baile ou festa como tocadores de viola e cantadores que eram, a cena se repetia. Meu tio, entre constrangido e orgulhoso, estufava o peito e alegrava-se por ter a amada como epíteto.
Certo é que chegou a hora de fazerem seu registro de identidade. Naqueles tempos perdidos de nosso Brasilzão, podia-se colocar o nome que se quisesse. Imaginem que poderia Drumond de Andrade, Machado de Assis ou coisa assim...Ou mesmo Procópio Ferreira que era realmente o nome da família. Não! Meu tio orgulhosamente escolheu: Evaristo Ferreira da Silva. Meu pai demonstrando o grande amor que o unia ao irmão fez a mesmíssima coisa. Belmiro Ferreira da Silva.
Ninguém sabe o que é feito da morena Sílvia. Meu tio casou-se com outra e deu o nome da amada à primogênita.
Meu pai a cada filho deu um sobrenome diferente. Coube somente a mim ser apenas Silva. Para homenagear minha mãe chamou-me Cassia, para honrar minha bisavó, Evangelina. Carrego a força das mulheres de minha linha materna e este Silva, resquício de um intenso amor que nunca foi vivido e jamais esquecido.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Vidro

















Translúcidos olhos me fitaram
Pudicos ou dissimulados
Esconderam-se no luar.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Coraline


Qualquer bruxa de respeito sabe que pra ser bruxa mesmo faz-se imprescindível ter gatos. Eles são a manifestação animal do poder de transitar entre os mundos sem se assustar por pouca coisa.
Desde muito pequena pressentia este fato e minha história é sempre entrelaçada à de uma profusão de felinos. Hoje, porém, é dia de celebrar aquela que veio pra inequivocamente reforçar minha identidade bruxística.
Coraline, panterinha negra que surgiu do nada. Vem de outra dimensão não captada por ultrassom comum. Não era esperada e nasceu já meio acelerada. Adora "causar", provocar, aprontar... Passarinhos tremei!!! Esta é caçadora, fêmea felina que salta e alcança os desavisados voadores.
Expulsou a branca Galadriel do trono e fez-se senhora do castelo.
No mundo por trás de seus eternos olhos verdes os humanos foram criados para amar, cuidar, mimar e alimentar os gatos. Especialmente os pretos...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A Dona Ana Amélia

Houve um dia perdido nas brumas em que uma velha senhora herdou um bebê. Árdua tarefa para suas já cansadas pernas. Seu imenso coração porém disputara a responsabilidade com um clã de fortes mulheres. Vencera. Agora era cuidar, alimentar,ninar, criar mundos de cucas, bruxas,madonas e fadas.
A criança devolveu-lhe as ganas de viver e seus olhos que tantas eras contemplaram lhe mostraram imensidões verdes que um dia iriam compor seus sonhos. Era forte e terna. Terra cabocla e sinhazinha esquecida.Ensinou a menina a ler, abrindo um universo de possibilidades, ensinou-lhe a escrever, a matematicar.
Curiosa que era, tinha explicações conclusivas para tudo: céu, inferno, vida, morte. Ambígua,relanceava benzeduras de seu passado de parteira, meio que escondida de si mesma,ainda que guardiã dos valores religiosos pendia para um dogmatismo autoritário. A alma, porém, era desobediente por natureza, desde que menina apanhara uma surra daquelas do pai para poder ter o direito de estudar como seus irmãos.
Amava a generosidade e praticava a gentileza. A menina encantada cresceu, muitas vezes aterrorizada pelo lobo mau que lhe tiraria seu porto seguro. Ele não conseguiu chegar à floresta e a velha cumpriu sua jornada. Quando seu Mestre veio buscá-la a criança já havia se tornado mulher e mãe. Aprendera a cuidar, a amar, a agradecer e a continuar...
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