sexta-feira, 30 de março de 2012

Abençoar é preciso...

Abençoar e ser abençoado é sempre muito bom. Há tempos aprendi a colecionar bençãos e resistir à minha tendência natural de lançar maldições e imprecações pelo mundo. Desta forma a beleza passa a ser uma companheira constante da caminhada, bem como a alegria e a paz. Esta é mais uma vinda da sabedoria celta.







Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente ódio.
Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.
Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.
Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.
Que a musica seja tua companheira de momentos secretos contigo mesmo.
Que os teus momentos de amor contenham a magia de tua alma eterna em cada beijo.
Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.
Que cada dia seja um novo recomeço, onde tua alma dance na luz.
Que em cada passo teu fiquem marcas luminosas de tua passagem em cada coração.
Que em cada amigo o teu coração faça festa, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas afins.
Que em teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente em teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a alma é grande e generosa.
Que o teu coração voe contente nas asas da espiritualidade consciente, para que tu percebas a ternura invisível, tocando o centro do teu ser eterno.
Que um suave acalanto te acompanhe, na terra ou no espaço, e por onde quer que o imanente invisível leve o teu viver.
Que o teu coração sinta a presença secreta do inefável!
Que os teus pensamentos e os teus amores, o teu viver e a tua passagem pela vida, sejam sempre abençoados por aquele amor que ama sem nome.
Aquele amor que não se explica só se sente.
Que esse amor seja o teu acalento secreto, viajando eternamente no centro do teu ser.
Que a estrada se abra à sua frente.
Que o vento sopre levemente às suas costas.
Que o sol brilhe morno e suave em sua face.
Que respondas ao chamado do teu Dom e encontre a coragem para seguir-lhe o caminho.
Que a chama da raiva te liberte da falsidade.
Que o ardor do coração mantenha a tua presença flamejante e que a ansiedade jamais te ronde.
Que a tua dignidade exterior reflita uma dignidade interior da alma.
Que tenhas vagar para celebrar os milagres silenciosos que não buscam atenção.
Que sejas consolado na simetria secreta da tua alma.
Que sintas cada dia como uma dádiva sagrada tecida em torno do cerne do assombro.
Que a chuva caía de mansinho em seus campos...
E, até que nos encontremos de novo.
Que os Deuses lhe guardem na palma de Suas mãos.
Que despertes para o mistério de estar aqui e compreendas a silenciosa imensidão da tua presença.
Que tenhas alegria e paz no templo dos teus sentidos.
Que recebas grande encorajamento quando novas fronteiras acenam.
Que este amor transforme os teus dramas em luz, a tua tristeza em celebração, e os teus passos cansados em alegres passos de dança renovadora.
Que jamais, em tempo algum, tu esqueças da Presença que está em ti e em todos os seres.
Que o teu viver seja pleno de Paz e Luz! 

quarta-feira, 28 de março de 2012

Sobre a responsabilidade do amor

Há tempos venho pensando na tão famosa afirmação retirada do não menos conhecido " O Pequeno Príncipe":
"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." Interessante esta ideia de amor como conquista e cativeiro. Boa coisa não poderá dar... Cativar é escravizar o que implica exercer poder. Esta é a maior confusão que se pode fazer. Eu me interesso por alguém, decido conquistá-lo e uma vez alcançando esta meta, prendo o pobre numa dependência sem desejos ou vontades a não ser de me servir fielmente.Sou responsável pelos sentimentos de outra pessoa que não eu mesma. E chamo tudo isto de amor?!! Fantasia de onipotência desenfreada.
Amor não se conquista, não é território. Amor se ama e se, amado também,  se transborda e se cuida. Sujeitos deste amor podemos,apenas, nos responsabilizar pelo que sentimos nós. O outro e o que ele sente é de responsabilidade dele. Não provoco amor no ser amado, ele sente por vontade própria. Posso perder a fantasia de conquistar, dominar e cativar. Perco também a ilusória segurança do cativeiro em que prendi o amante. Ganho, em contrapartida, a possibilidade de um amor que vive da liberdade e dela se alimenta...Sem garantias, nem travas de segurança, mas eterno enquanto dure.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Reencontro


Há muito, muito tempo esbarrei num personagem mitológico. Excêntrico, como poucos; banido  de muitos espaços e proscrito de todos os cultos. Tomou-me pela mão e me conduziu gentilmente para dentro de minhas paisagens. Caminhamos por luminosas pradarias e trevosas cavernas. Conheci mundos insuspeitados e dores indesejadas. Cresci e me multipliquei. Chamou a existência preciosidades escondidas. Levou-me a partilhar o caminho com outros estranhos que, como nós, se encantavam com as aventuras de dentro. 

Como chegou  se foi deixando um vazio e uma tristeza saudosa de tudo o que experimentamos.

Mas...os outros loucos, banidos e proscritos um dia resolveram se reencontrar e num magnífico Pow-Wow trocar experiências, histórias e celebrar as colheitas destes anos. Juntos relembramos os dias em que felizes descobríamos quem realmente éramos. Dançamos, rimos, choramos e sonhamos. Fomos visitados por flores e borboletas. As águas de novo se moveram e o fogo com suas poderosas salamandras crepitou noite afora. Resgatamos nossa irmandade e assim seguiremos seguros com a missão de construir uma nova e bela cidade...

quarta-feira, 14 de março de 2012

Cassandra de Troia

Troiana e princesa, Cassandra quando pequena adormeceu no Templo de Apolo. Serpentes a rodearam e passearam por seu corpo tocando também sua língua e ouvidos. Não seria mais apenas uma menina como as outras. Enxergava mais, ouvia e sabia muito. Cresceu e se tornou a segunda mulher mais bela do mundo, superada apenas por Helena, a que traria a desgraça à Troia. Devota de Apolo recebeu do deus o dom da profecia, mas também seu amor e desejo. Fez o impensável e recusou o assédio de Apolo que furioso  a condenou a nunca ser ouvida e que ninguém acreditasse em suas profecias. Profetizou a guerra e a queda de sua amada e inexpugnável cidade. Avisou a todos sobre o perigo daquele cavalo que surgiu como presente nos portões de Troia. Por ninguém foi ouvida. Passou a ser considerada desequilibrada e louca.  Perdida a guerra foi levada por Agamenon como concubina. Alguns dizem que fugiu e fundou uma grande cidade tendo muitos descendentes.
Certo é que como tantas mulheres sabia aquilo que havia de acontecer e buscava fazer-se considerada.  Como muitas não foi ouvida e a catástrofe não foi evitada. Quantas de nós, Cassandras, experimentamos esta sensação em nossos dias?

domingo, 11 de março de 2012

Se eu pudesse trincar a terra toda...

Há alguns dias encontrei uma amiga querida e ficamos nos deliciando em lembrar poemas. Alguns que tínhamos encontrado quando adolescentes e outros nos quais esbarramos pela intensa vida que vivemos. Piscianas apaixonadas pela Palavra e pelo Amor. Revisitamos Pessoa, Neruda... Hoje amanheci com um gosto de poesia e terra na boca. Relembrei Caieiro...




Se eu pudesse trincar a terra toda (7-3-1914)

XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

quinta-feira, 8 de março de 2012

A Donzela que era mais sábia que o Czar

Desde pequena os contos de princesa me intrigavam: seriam elas tão tolas e desvalidas que sempre precisariam de um príncipe para salvá-las? Comeriam maças envenenadas distraidamente, dormiriam a espera de um beijo que as despertassem? Até que apurei os ouvidos , procurei e encontrei histórias onde, inequivocamente a princesa é a heroína, cumpre tarefas, enfrenta desafios e chega ao fim da jornada transformada pelo desenrolar de um caminho pessoal.  As exigências feitas às princesas não são de força física mas de uma capacidade interna de solucionar problemas e encontrar saídas criativas onde nada existe.  A jornada da princesa tem, portanto, particularidades bem femininas e  suas conquistas também. Príncipes, quando aparecem, são coadjuvantes. A protagonista da própria história é sempre a princesa. Podemos aprender muito com a suavidade, persistência, astúcia e perspicácia destas meninas.







A Donzela que era mais sábia que o Czar


        Era uma vez um homem pobre que tinha uma única filha.
Essa jovem era surpreendentemente sábia; parecia possuir uma compreensão muito acima do que seria de se esperar na sua idade e frequentemente dizia coisas que espantavam a seu próprio pai.
Um dia, quando estava sem um centavo, esse homem foi visitar o czar, para pedir sua ajuda.
O czar ficou atônito ao ver a forma refinada com que o homem falava, e perguntou-lhe onde havia aprendido aquelas frases.
— Com minha filha – respondeu o homem.
— Sim, mas onde sua filha aprendeu? – perguntou o czar.
— Deus e nossa pobreza a tornaram sábia – foi a resposta.
— Aqui está algum dinheiro para as suas necessidades imediatas – disse o czar, — e trinta ovos, para que você peça à sua filha, em meu nome, para que os ponha a chocar para mim. Se ela o fizer com êxito darei a vocês ricos presentes. Caso ela não o consiga, você será torturado.
O homem voltou para casa e deu os ovos para sua filha, que os examinou, pesando um ou dois em suas mãos, e assim ela se deu conta de que eram ovos cozidos. Disse ao seu pai:
— Pai, espere até amanhã. Talvez eu descubra o que se pode fazer.
No dia seguinte ela acordou bem cedo e, tendo pensado uma solução, ferveu algumas sementes. Colocou-as dentro de uma pequena bolsa e deu-a a seu pai, dizendo:
— Vá com o arado e os bois, pai, e comece a arar ao lado do caminho por onde o czar passa quando está indo à igreja. No momento em que o czar puser sua cabeça para fora da janela da carruagem você deve gritar: "Vamos, bravos bois, arem a terra para que essas sementes cozidas cresçam bastante!"
O pai fez o que sua filha havia dito, e conforme a previsão dela, o czar olhou o homem trabalhando pela janela da carruagem. Quando escutou o que ele gritava, disse:
— Homem estúpido, como você pode esperar que sementes cozidas produzam algo?
O homem, prevenido pela sua filha, gritou:
— Da mesma forma que ovos cozidos produzem pintos!
O czar então seguiu seu caminho, sabendo que a jovem havia sido mais esperta do que ele.
Porém as coisas não terminariam assim...
No dia seguinte o czar enviou fio de linho enrolado e embaraçado à casa do homem. O mensageiro disse:
— Este linho deve ser usado para fazer velas para o barco do meu senhor, e isto deve ser feito até amanhã. Caso contrário você será executado.
Chorando, o homem entrou em casa, mas sua filha lhe disse:
— Não tenha medo, pensarei em uma solução.
Na manhã seguinte ela se dirigiu a seu pai e entregou-lhe um pedaço de madeira, dizendo:
— Diga ao czar que se ele puder fazer todos os instrumentos necessários para fiar e tecer deste pedaço de madeira, eu farei o tecido para as velas com este linho.
O homem fez conforme a sua filha havia indicado, e o czar ficou ainda mais impressionado com a resposta da jovem. No entanto ele pôs uma pequena taça na mão do homem e disse:
— Vá, e leve esta taça para sua filha e peça-lhe para esvaziar o mar com ela, porque assim poderei aumentar meus domínios com novas pastagens.
O homem voltou para casa e deu a taça à filha, dizendo-lhe que o governante havia pedido novamente algo impossível de ser feito.
— Vá se deitar – disse ela. – Pensarei em algo, concentrando minha mente nisso toda a noite.
Ao amanhecer chamou o pai e disse:
— Diga ao czar que se ele puder represar todos os rios do mundo com este pedaço de estopa, então esvaziarei o mar para ele.
O pai voltou ao palácio e contou ao czar o que sua filha dissera. O czar reconhecendo que ela era mais sábia do que ele, pediu que ela fosse enviada à corte imediatamente. Quando ela se apresentou, ele lhe perguntou:
— O que é que pode ser ouvido a uma grande distância?
Sem vacilar, ela respondeu imediatamente:
— Somente o trovão e a mentira podem ser ouvidos desde os pontos mais distantes, ó czar.
Atônito, o czar segurou sua própria barba, e virando-se para os cortesãos lhes perguntou:
— Quanto acham que vale a minha barba?
Todos começaram a calcular o que pensavam que a barba valia, dando-lhe preços cada vez mais altos para adular sua Majestade. Então o czar perguntou à donzela:
— E você, minha criança, quanto você acha que vale a minha barba?
Os cortesãos aguardavam atentos a resposta.
— A barba de Vossa Majestade vale três chuvas de verão.
O czar muito surpreendido, disse:
Você respondeu corretamente. Eu me casarei com você e farei de você minha esposa hoje mesmo.
E assim a jovem se tornou a czarina. Mas assim que as bodas terminaram ela disse ao czar:
— Tenho um pedido a fazer. Conceda-me a graça, escrita com letra de sua própria mão, de que se você ou qualquer um da sua corte desgostar-se comigo, e eu tiver que partir, me será permitido levar comigo aquilo de que eu mais gostar.
Encantado com a bela donzela, o czar pediu uma pena e um pergaminho e imediatamente escreveu, selando o documento com o seu anel de rubi, tal como ela havia solicitado.
Os anos se passaram com muita felicidade para ambos. Um dia, porém, o czar teve uma acalorada discussão com a czarina e, irritado, ordenou:
— Vá embora! Desejo que deixe este palácio para nunca mais voltar.
— Então irei embora amanhã – disse a jovem czarina, obedientemente. – Permita-me somente passar a noite aqui para preparar meu regresso a casa.
O czar concordou e, antes de deitar-se, tomou a bebida de ervas que ela sempre preparava para ele. Assim que a bebeu o czar caiu adormecido. A czarina levou-o para a carruagem real, e partiram para a cabana de seu pai.
Quando amanheceu o czar, que havia dormido tranquilamente a noite inteira, despertou olhando desconcertado ao seu redor.
— Traição! – gritou. – Onde estou e de quem sou prisioneiro?
— Meu, Vossa Majestade – respondeu a czarina docemente. – O documento escrito por sua própria mão está aqui.
E lhe mostrou o pergaminho onde ele havia escrito que se ela tivesse que sair do palácio poderia levar aquilo de que mais gostasse.
Quando o leu, o czar riu de coração, e declarou que seu afeto por ela ainda era o mesmo.
Ao que ela respondeu:
— Meu grande amor por você, ó czar, me fez assim tão audaciosa. Mas, se arrisquei a minha vida, isso demonstra o quanto amo você.
E foi assim como eles se uniram novamente e viveram felizes para o resto de suas vidas.

História reproduzida do livro Histórias da Tradição Sufi

sábado, 3 de março de 2012

Chico canta...







Era ainda dezembro e uma amiga me ligou perguntando se eu queria ir no show do Chico. Imediatamente respondi que queria e muito. Ingressos esgotados no site, busca de alternativas e ela, persistente, conseguiu enfim comprar um camarote para 4 pessoas, sem bem saber quem poderia ir conosco. Perguntou a uma amiga querida que estava em viagem e ela também concordou. Por fim surgiu a quarta apaixonada e o grupo estava completo. Espera dos ingressos, tensão, expectativa. Tudo correu bem e chegou o grande dia. Sexta-feira à noite em São Paulo. Duas horas no trânsito e chegamos ao " Far Far Away" Hall. Delícia de conversa, delícia de companhia, delícia de vinho.
E sobe ao palco, tímido como sempre o soube, esta entidade: Chico Buarque. Toca seu violão e canta... Canções de hoje, de ontem. Pulam recordações de tantas eras e ele, quase um deus, desfia sua poesia pela noite. Eu me sinto num templo contemplando aquela aparição. Era quem ,além de tudo, um dia escreveu "Budapeste", para mim uma obra como poucas. Alimento minha alma de " O meu amor", "Anos dourados" e outras...Como é bom estar viva e poder apreciar as coisas belas que a vida nos oferece!  Sinto uma gratidão infinita por poder naquele momento estar exatamente naquele lugar com aquelas pessoas. E se sexta é dia de Afrodite, ontem ela se revelou intensamente através da presença e da voz de seu filho Chico...








sexta-feira, 2 de março de 2012

Afrodite se revela...







Até aquele dia ela tinha certeza de que era uma mulher como as outras, comum e mediana. Caminhava anônima pelas ruas sem que ninguém a notasse. Nem particularmente bela, nem assumidamente feia. Vaidades não costumava cultivar. Econômica em gestos, palavras e olhares beirava à invisibilidade confortável dos semelhantes. Talvez se ela não tivesse se atrasado uns minutos sua vida seguiria assim indefinidamente. Mas naquela sexta-feira, como tantas outras, chegou à plataforma do trem para o trabalho alguns segundos antes das portas se fecharem. Hesitou entre arriscar e esperar. De repente percebeu aqueles olhos, intensos e perscrutadores, que a fitavam como se estivessem vendo uma aparição da Deusa.  Estacou e sentiu vibrar cada célula do seu corpo como se tomada por um raio. Sentiu-se bela, poderosamente bela. Magnética. Não saberia precisar a eternidade daquele instante. A porta se fechou, o trem se foi e ela, possuída por sua própria divindade, nunca mais foi a mesma...

quinta-feira, 1 de março de 2012

De como a Verdade entrou num palácio...

Este é um conto que Regina Machado, uma da melhores contadoras de história que conheço, encontrou num livro de Malba Tahan, o fantástico escritor de " O Homem que Calculava". Quando pequena era fascinada por este livro. A tradição árabe é rica em contos maravilhosos e este professor brasileiro se encantou com eles , passou parte de sua vida a estudar e disseminar histórias. Seu nome  verdadeiro era Júlio César de Mello e Souza. Ele próprio trasvestiu-se de fábula e criou mundos...





Uma Fábula sobre a Fábula


Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!

Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pouco depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apareceu e viu aquela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcertado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
- Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sultão Haroun Al-Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse:
- Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar como nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo. 
- Quem é essa mulher? - perguntou o grão-vizir com viva curiosidade.
- Ela disse que se chama Verdade, senhor - respondeu o guarda.
O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
- O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste.

Acontece que...

Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria.
Com voz severa ela respondeu:
- Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor desse palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante dele, disse:
- Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheirosas deseja falar com nosso sultão.
- Como ela se chama? - perguntou o grão-vizir.
- O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-vizir começou a tremer, morto de medo:
- Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo caminho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida.

E isso porque...

Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, aneis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
 E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
- Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esqueceu-se de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo:
- Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
- Como é que ela se chama?
- Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
- O quê? - disse o grão-vizir completamente encantado - A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas.
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.

Machado, Regina - O violino cigano e outros contos de mulheres sábias - São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...