quinta-feira, 28 de junho de 2012

Naufrágio

Há tempos ela vinha ficando quieta, silenciosa, muda. Espreitava atenta os ruídos do pirata que habitava seu coração. Não saberia dizer quando lá ele se instalara, mas o certo é que causava trepidações em seu corpo e mudanças bruscas de temperatura. Depois de muito refletir resolveu que esperaria alguma comunicação, algum pedido de resgate. Nada. Aconteciam festins após festins; tesouros e despojos sendo tomados todos os dias. E o rum corria solto. Descontrolada e totalmente entregue não viu alternativa senão afundar o navio. Abriu vários buracos no casco enquanto o pirata dormia. Sentiu a água avançar barco acima.
Acordou falante e completamente curada da paixão insana. Nunca mais ouviu o mar...

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Cecilia fala...

Nesta nossa língua tão rica e cheia de possibilidades, poetas encontram caminhos tão simples de nos trazer beleza e novos horizontes internos. Cecília Meireles é mestre nisto. Fala de céus, mares, borboletas e jardins. Fala de sonho e desilusão. Fala Cecília...





Canção
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

La Loba

Tem dias em que só uma boa história para te curar uma tristeza ou te tirar da apatia. Esta contada por Clarissa Pínkola é um dos bálsamos mais eficazes que conheço. Traz de volta à vida a fé que se perdeu... Bem vinda seja La Loba!!!





La Loba

Existe uma velha que vive num lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já viram. Como nos contos de fada da Europa oriental, ela parece esperar que cheguem até ali pessoas que se perderam, que estão vagueando ou à procura de algo.
Ela é circunspecta, quase sempre cabeluda e invariavelmente gorda, e demonstra especialmente querer evitar a maioria das pessoas. Ela sabe crocitar e cacarejar, apresentando geralmente mais sons animais do que humanos.
Dizem que ela vive entre os declives de granito decomposto no território dos índios tarahumara. Dizem que está enterrada na periferia de Phoenix perto de um poço.Dizem que foi vista viajando para o sul, para o monte Alban num carro incendiado com a janela traseira arrancada. Dizem que fica parada na estrada perto de El Paso, que pega carona aleatoriamente com caminhoneiros até Morelia, México, ou que foi vista indo para a feira acima de Oaxaca, com galhos de lenha de estranhos formatos nas costas. Ela é conhecida por muitos nomes: La Huesera, a Mulher dos Ossos; La Trapera, a Trapeira; e La Loba, a Mulher-Lobo.
O único trabalho de La Loba é o de recolher ossos. Sabe-se que ela recolhe e conserva especialmente o que corre o risco de se perder para o mundo. Sua caverna é cheia de ossos de todos os tipos de criaturas do deserto: o veado, a cascavel, o corvo. Dizem, porém, que sua especialidade reside nos lobos.
Ela se arrasta sorrateira e esquadrinha as montañas e os arroyos, leitos secos de rios, à procura de ossos de lobos e quando consegue reunir um esqueleto inteiro, quando o último osso está no lugar e a bela escultura branca está disposta à sua frente, ela senta junto ao fogo e pensa na canção que irá cantar.
Quando se decide, ela se levanta e aproxima-se da criatura, ergue seus braços sobre o esqueleto e começa a cantar. É aí que os ossos das costelas e das pernas do lobo começam a se forrar de carne, e que a criatura começa a se cobrir de pelos. La Loba canta um pouco mais, e uma proporção maior da criatura ganha vida. Seu rabo forma uma curva para cima, forte e desgrenhado.
La Loba canta mais, e a criatura-lobo começa a respirar.
E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta, o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro.
Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar um rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de luar sobre seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte.
Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr do sol, e quem sabe esteja um pouco perdido, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode simpatizar com você e lhe ensinar algo- algo da alma.

Estés, Clarissa Pínkola - Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem- Rio de Janeiro, Rocco, 1994

Falando sério...


Na última sexta fui, como sempre, para Mogi das Cruzes de trem. Por motivos festivos saí de lá um tanto mais tarde do que o normal e portanto, cheguei na baldeação de Guaianazes numa hora de pico. As portas se abriram e um bando de pessoas querendo entrar no trem de qualquer maneira impediam a saída e quase me derrubaram com sua força de turba. Foi quando uma boa alma me avisou de que eu deveria sair pela primeira porta do vagão onde ficam guardas para organizar as coisas. Poderia eu dizer que são todos uns mal educados que não sabem se comportar com civilidade. Mas, olhando de perto, quem submetido diariamente a este tratamento de gado, num vagão tão apinhado de gente, em que se suspende todos os pudores de proximidade e espaço pessoal, consegue preservar sua integridade e humanidade? E quem realmente se preocupa com o bem estar destes trabalhadores? Com seu conforto então nem se fala. São pobres, não têm carro, não merecem regalias. Triste é saber que nada lhes é oferecido e depois se cobra que tenham consciência. Consciência que lhes é tirada cotidianamente para que aguentem e que se tivessem  não sobraria pedra sobre pedra...

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Álvaro e o dia de seus anos

Dizem que geminianos assobiam e chupam cana ao mesmo tempo. Dizem que gostam de escarafunchar tudo e descobrir tudo. Dizem que têm a capacidade de se multiplicar em mil. Dizem... Fernando Pessoa confirma isto com maestria e vai além. Visita todas as paisagens e todos os cantos da alma com olhares tão diversos que chega a espantar. Grande geminiano que nos transpassa e eleva. Aqui Álvaro canta a saudade de seus aniversários de infância. Soberbo.
      ANIVERSÁRIO
    No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho...) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
    Álvaro de Campos, 15-10-1929
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...