segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Nostalgia e Álvaro de Campos

Voltei hoje às paisagens de minha adolescência...Visitei meu colégio onde fiz da quinta a oitava séries. Ângelo Bortolo, perdido na serra da Cantareira. Hoje nem tão serra assim. Como são vívidas as memórias daquela época de ouro, as salas, os corredores, as quadras, as paqueras perdidas no tempo. Sinto falta de minha leveza, dos meus olhos que para tudo brilhavam e que esperavam muito. A vida foi  boa ,mas eu daria meu reino para voltar no tempo e reviver um dia que fosse daquela nascente adolescência.
Nostalgia melancólica que me trouxe um companheiro querido naquelas infinitas horas de tédio próprio da idade: Álvaro de Campos.




      TABACARIA
    Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê - Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Fragmentos etílicos

Acordou com uma fome daquelas. Fome que parecia vir do mais profundo de suas vísceras. Não queria nada além de algo que também tivesse como origem as vísceras de outro ser: um grande ovo estalado e bem salgadinho. Hummm...
Quanto ao ovo tudo correu bem. Bastou abrir a porta do velho e bom refrigerador e lá estavam, solenemente brancos ansiando pelo negro anti-aderente da frigideira. Com cuidado quase amoroso ligou o fogo, colocou o apetrecho fritante a postos e carinhosamente quebrou aquela casca hermética e perfeita.
Esta a tentar a ler o futuro de seu dia na forma que se manifestava quando lembrou-se da necessidade de suas papilas gustativas e saiu à caça do saleiro. Onde o danado se escondera? Vasculhou prateleiras e nada. Olhou desesperada dentro dos armários e o ovo a fritar insosso. Perscrutou por debaixo da mesa, das cadeiras, por trás do fogão. Estranho desaparecimento aquele! Não tinha sal em lugar nenhum, nem o previsível sal grosso para espantar mau olhado.
Ovo pronto e esturricado. De forma alguma conseguiria comê-lo. Completamente olvidada da garrafa vazia de tequila, limões espremidos e do ovo com tampa displicentemente largados na mesinha da sala, resquícios da orgia etílica mexicana da noite anterior, resolveu ir até à padaria da esquina matar seu desejo num saleiro alheio.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A menininha dos fósforos


Era uma vez um menino  que nasceu pobre, filho de um sapateiro e de uma lavadeira na Dinamarca. Seu pai gostava de incentivar sua imaginação, contava-lhe histórias e até fez um  teatro de marionetes para que se aventurasse pelos caminhos da arte. Tendo o pai uma saúde frágil morreu cedo, quando Hans tinha apenas 11 anos e teve que se sustentar trabalhando como aprendiz de tecelão e alfaiate. Até que decidiu ser ator e posteriormente dedicar-se à literatura. Sua infância pobre influenciou e muito os contos de fada que veio a escrever quando mais velho. Suas histórias são ricas em imagens tão nossas conhecidas e por vezes, profundamente tristes. A seguir , Hans Christian Andersen e uma de suas histórias mais trágicas. Como diria minha velha avó: "Imaginação apenas  não enche barriga!"




A Menininha dos fósforos



Era uma vez uma menininha que não tinha nem pai nem mãe e que morava na floresta negra. Havia nas proximidades da floresta uma aldeia, e ela havia aprendido que podia comprar lá fósforos por meio pêni que podiam ser vendidos na rua por um pêni inteiro. Se ela vendesse fósforos em quantidade suficiente, poderia comprar uma fatia de pão, voltar para sua meia-água na floresta e ali dormir com as únicas roupas que possuía.
Chegou o vento, e ficou muito frio. Ela não tinha sapatos, e seu casaco era tão fino que chegava a ser transparente. Seus pés há muito haviam passado do ponto de estar azuis de frio. Seus dedos dos pés estavam brancos, assim como os dedos das mãos e a ponta do nariz. Ela perambulava pelas ruas, implorando a desconhecidos que comprassem fósforos dela. Mas ninguém parava e ninguém prestava a mínima atenção a ela.
Por isso, uma noite ela se sentou dizendo para si mesma que tinha fósforos e que podia acender uma fogueira para se aquecer. Só que ela não tinha nem gravetos nem lenha. Resolveu acender os fósforos assim mesmo.
Ela se sentou com as pernas esticadas para a frente e acendeu o primeiro fósforo. Ao fazê-lo, pareceu-lhe que o frio e a neve desapareciam por completo. O que ela viu no lugar da neve rodopiante foi uma sala, uma linda sala com um enorme fogão de cerâmica verde-escuro, com uma porta de ferro trabalhado em arabescos. Tanto calor emanava do fogão que o ar chegava a ondular. Ela se aconchegou junto a ele e se sentiu no paraíso.
De repente, porém, o fogão se apagou, e ela estava mais uma vez sentada na neve, tremendo tanto que os ossos do seu rosto retiniam. E assim ela acendeu o segundo fósforo. A luz iluminou a parede do edifício ao lado de onde ela estava sentada, e ela subitamente pôde ver através da parede. Na sala por trás da parede, havia uma toalha alvíssima sobre a mesa, e ali na mesa havia porcelana do branco mais branco. Numa travessa, um ganso, que acabava de ser preparado. E, exatamente quando ela esticou a mão para alcançar o banquete, a miragem desapareceu.
Ela estava novamente na neve, mas agora seus joelhos e quadris não doíam mais. Agora o frio abria caminho pelo seu torso e pêlos braços com formigamentos e ardências, e por isso ela acendeu o terceiro fósforo.
E na chama do terceiro fósforo havia uma linda árvore de Natal, com uma belíssima decoração de velas brancas, babados de renda e maravilhosos enfeites de vidro, além de milhares e milhares de pequenos pontos de luz que ela não conseguia discernir direito.
Ela olhou para o alto dessa árvore enorme que crescia cada vez mais e avançava cada vez mais na direção do teto até que se transformou nas estrelas do céu lá em cima. Uma estrela atravessou brilhante o céu, e ela se lembrou de sua mãe lhe ter dito que, quando morre uma alma, uma estrela cai.
E do nada surgiu sua avó, tão carinhosa e delicada, e ai menina se sentiu feliz ao vê-la. A avó levantou o avental, envolveu nele a criança, abraçou-a bem apertado, e a menina se sentiu contente.
Mas a avó também começou a desaparecer. A menina acendia cada vez mais fósforos para manter a avó consigo... cada vez mais fósforos para mantê-la consigo... cada vez mais... e elas começaram a subir juntas para o céu, onde não havia nem frio, nem fome, nem dor. E pela manhã, entre as casas, encontraram a menina imóvel e morta.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

João Cabral de Melo Neto , Drummond e o guarda-chuva

Poesia é um dos portais que mais nos aproxima da alma. Sons descortinam imagens internas e ampliam nossas paisagens banhando-as com uma luminosidade sempre nova a cada vez que nos encontramos com o poeta amado. Quando um fala com outro então...

A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.


Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.


Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro 
estações, dos quatro pontos cardeais.


Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.


Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Hakuin, o mestre Zen

Mais uma história zen em que as reações do mestre mostram sua sabedoria e desapego...




Hakuin, o mestre Zen, era louvado por todos que o conheciam pela pureza de sua vida.
Uma linda moça japonesa, cujos pais eram donos de um armazém, morava lai perto. Um dia, sem qualquer aviso, seus pais descobriram que ela estava grávida.
Ficaram furiosos. A moça, no entanto, não queria revelar quem era o pai da criança. Depois de muita insistência, porém, acabou confessando que era Hakuin.
Enfurecidos, os pais da moça foram procurar o mestre.
- É isso mesmo? - foi tudo o que disse Hakuin.
Depois que a criança nasceu, trouxeram o bebê para Hakuin. A essa altura, o mestre já predera a reputação. Isso, todavia, não parecia incomodá-lo. Hakuin aprendeu a cuidar muito bem da criança. Obtinha leite com os
vizinhos e oferecia ao pequenino tudo o que esse precisava.
Um ano depois, a mãe da criança não pôde mais suportar, e contou aos pais  a verdade: o pai da criança era, na realidade, um jovem que trabalhava no mercado de peixes.
A mãe e o pai da menina foram correndo a Hakuin pedir-lhe predão. Desculparam-se sem fim pelo engano e levaram a criança de volta consigo.
Hakuin não fez objeções. Ao entregar-lhes a criança, disse apenas:
- É isso mesmo?

Histórias da alma; Histórias do coração: parábolas e narrativas do caminho espiritual e na contemporaneidade. São Paulo, Pioneira, 1994.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Sapatinhos Vermelhos

Existem histórias tristes com finais que nos deixam perplexos e desolados. Tais histórias nos dão pistas das armadilhas em que podemos cair pelos caminhos da alma. Andersen é mestre em contar tais histórias.
Certa vez fui convidada a fazer uma apresentação naquela praça perto da Fnac ali em Pinheiros. Muitas crianças pararam para ouvir a contação. Nunca vou esquecer a carinha de espanto e medo diante do final de " Sapatinhos Vermelhos". Por vezes tal assombro pode ter funções importantíssimas para o desenvolvimento da psique. Vamos ao conto...

Sapatinhos Vermelhos


Era uma vez....

.... uma menina pobre e sozinha, tão pobre que nem sapatos tinha. Ela morava em uma cabana, na floresta, e seu grande sonho era ter um par de sapatos vermelhos. Por isso, foi guardando todos os trapos vermelhos que encontrava, até que conseguiu fazer um par de sapatos vermelhos de pano.
Ela adorava seus sapatos, usá-los fazia com que se sentisse feliz, mesmo tendo que passar os dias procurando frutas e nozes para comer, no bosque solitário onde vivia.

Um dia....
.... ela estava andando por uma estrada, quando passou uma velha muito rica, em uma carruagem dourada. A velha parou ao lado da menina, e disse "vou leva-la para minha casa, e cria-la como minha filha". Pobre e sem esperanças, a menina aceitou o convite e foi morar na casa da velha senhora.

Ao chegar, os criados lhe deram banho, pentearam, cortaram o cabelo e vestiram com roupas novas e muito bonitas. Animada com as coisas novas, a menina nem se lembrou dos trapos que usava, nem do seus adorados sapatinhos vermelhos. Quando, passados alguns meses, perguntou sobre eles aos criados, foi informada que a senhora havia jogado tudo no fogo, dizendo que as roupas eram imundas e os sapatos eram ridículos.
A menina ficou muito triste, porque adorava os seus sapatinhos vermelhos. Além disso, a vida nova tinha perdido todo o encanto. Ela era obrigada a ficar sentada, quietinha, o dia todo. Não podia comer com as mãos. Não podia correr ou pular, ou rolar na grama. E, quanto mais o tempo passava, mais falta ela sentia de seus lindos sapatinhos vermelhos. Mais importantes eles se tornavam.

O tempo passou...
...e chegou o dia de ser crismada - porque a velha senhora era muito religiosa e fazia questão de que a menina recebesse esse sacramento. Essa era uma grande ocasião para ela, que queria que a menina se apresentasse impecável na igreja. Costureiras foram chamadas para fazer o vestido. E a senhora levou a menina a um velho sapateiro aleijado, que era considerado muito bom, para fazer um par de sapatos novos para a ocasião especial.
Na vitrine do sapateiro havia um lindo par de sapatos vermelhos, do melhor couro. A menina escolheu os sapatos vermelhos, e a velha senhora, coitada, que enxergava tão mal que nem podia distinguir as cores, deixou que ela os levasse. O velho sapateiro, conivente, piscou para a menina e embrulhou os sapatos.
A entrada da menina na igreja, no dia seguinte, foi um escândalo. Todos olhavam para os sapatos vermelhos da menina. Como alguém podia se apresentar para a crisma com uns sapatos tão indecentes? A menina, entretanto, achava seus sapatos mais lindos do que qualquer coisa.
Quando chegou em casa, a tempestade estava armada. A velha senhora, que havia ouvido todos os comentários maldosos, proibiu a menina de usar novamente os tais sapatos."Nunca volte a usar os sapatos vermelhos"!, ordenou, furiosa.
A menina, entretanto, estava fascinada pelos sapatos. No domingo seguinte, quando foi a missa de novo, colocou os sapatos - e, novamente, a velha senhora não percebeu de que se tratava, pois enxergava muito mal.
Na entrada do templo, havia um velho soldado ruivo, com o braço enfaixado. Ele se reclinou em frente à menina, dizendo "posso tirar o pó de seus lindos sapatos"? A menina, toda orgulhosa, deixou que ele o fizesse. Enquanto limpava os sapatos, ele disse para a menina "não se esqueça de ficar para o baile", e cantou uma musiquinha alegre.
Novamente, se repetiu a desaprovação de todos dentro da Igreja. A menina, fascinada com seus sapatos, nem ligava. Não escutava a missa, não via ninguém. Só olhava para seus lindos sapatos vermelhos.
Na saída, o velho soldado disse para a menina "que belas sapatilhas para dançar". E a menina, mesmo sem querer, começou a rodopiar ali mesmo.
Sem parar...
...ela continuou dançando, dando voltas, fazendo piruetas. Todos corriam atrás, assustados. O cocheiro da velha senhora tentou alcançá-la, mas foi em vão. Finalmente, um grupo de pessoas conseguiu segurá-la, e o cocheiro arrancou os sapatos vermelhos, com grande dificuldade, dos pés da menina.
Ao chegar em casa, a velha senhora guardou os sapatos no fundo do armário, e disse para a menina "agora me ouça, nunca mais use esses malditos sapatos vermelhos". A menina, entretanto, não conseguia parar de pensar nos sapatos. Muitas vezes abria o armário, e ficava espiando os seus lindos sapatinhos vermelhos.
Algum tempo depois a velha senhora adoeceu. A menina, que já tinha que se comportar e ficar quieta, agora tinha que andar na ponta dos pés pela casa, para não perturbar. Estava enjoada, entediada. E não resistiu.

Abriu o armário...
... e pôs nos pés os sapatos vermelhos. Imediatamente, começou a dançar, rodopiar, bailar. Era como se os sapatos a guiassem. Eles a levavam, dançando, para onde queriam. E assim ela saiu de casa, dançando, e atravessou a propriedade, dançando, e chegou na floresta, dançando.
Na entrada da floresta, estava o velho soldado que havia encontrado na porta da igreja no dia da crisma.Ele estava encostado em uma árvore, e a saudou, repetindo "puxa, que lindos sapatos para dançar"! E lá se foi a menina, dançando, atravessando campos e cidades. Exausta, tentava, vez por outra, arrancá-los. Mas não conseguia.
Dançando, dançando, dançando, foi-se a menina pelo mundo. Tentou entrar em uma igreja para se benzer, mas o sacristão disse-lhe que não poderia, pois seus sapatos eram malditos. Tentou se aproximar de alguém, mas a maioria não queria ajudá-la, com medo de sua maldição. E os poucos que o faziam não conseguiam arrancar os sapatos malditos dos seus pés.
Por fim, exausta, a menina procurou o carrasco de uma aldeia, e lhe implorou que cortasse os sapatos. O carrasco tentou, mas não conseguiu. Desesperada, a menina disse "então corte-me os pés, não posso viver dançando".
O carrasco, penalizado e implorando perdão a ela e a Deus, cortou seus pés, com lágrimas nos olhos. E os seus pés, com sapatinhos vermelhos e tudo, continuaram dançando, dançando, dançando, pelo mundo afora.

Agora, a menina era uma pobre aleijada...
... e teve que aprender a viver dessa maneira. Sem sapatos vermelhos, e trabalhando como criada.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um conselho de Nasrudin


Talvez os pais de hoje em dia deveriam seguir este conselho...

Quando dar e quando receber



Nasrudin passeava pelo mercado, quando um homem se aproximou.
- Sei que és um grande mestre sufi – disse. – Hoje de manhã, meu filho me pediu dinheiro para comprar uma vaca; devo ajudá-lo?
- Esta não é uma situação de emergência. Então, aguarde mais uma semana antes de atender o seu filho.
- Mas tenho condições de ajudá-lo agora; que diferença fará esperar uma semana?
- Uma diferença muito grande – respondeu Nasrudin.
- A minha experiência mostra que as pessoas só dão valor a algo quando têm a oportunidade de duvidar se irão ou não conseguir o que desejam

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Um conto zen

Céu e inferno podem ser considerados lugares externos a nós para onde iremos depois de nossa morte por mérito ou castigo. Ou estados de espírito que visitamos constantemente....

Um conto zen

Um samurai grande e forte, de índole violenta, foi procurar um pequenino monge.
- Monge - disse numa voz acostumada à obediência imediata - Ensine-me sobre o céu e o inferno!
O monge miudinho olhou para o terrível guerreiro e respondeu com o mais absoluto desprezo:
- Ensinar a você sobre o céu e o inferno? Eu não poderia ensinar-lhe coisa alguma. Você está imundo. Seu fedor é insuportável. A lâmina da sua espada está enferrujada. Você é uma vergonha, uma humilhação para a classe dos samurais. Suma da minha vista! Sua presença execrável me é insuportável.
O samurai enfureceu-se. Estremecendo de ódio, o sangue subiu-lhe ao rosto e ele mal conseguia balbuciar palavra de tanta raiva. Empunhou a espada, ergueu-a sobre a cabeça  e se preparou para decapitar o monge.
- Isso é o inferno - disse o monge mansamente.
O samurai ficou pasmo. A compaixão e absoluta dedicação daquele pequeno homem, oferecendo a própria vida para ensinar-lhe sobre o inferno! O guerreiro foi pouco a pouco baixando a espada, cheio de gratidão, subitamente pacificado.
- E isso é o céu - completou o monge com serenidade.

Histórias da alma; Histórias do coração: parábolas e narrativas do caminho espiritual e na contemporaneidade. São Paulo, Pioneira, 1994.
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