terça-feira, 29 de novembro de 2011

Oxum fica pobre por amor a Xangô

Há alguns anos fiz um curso com Ronilda Yakemi Ribeiro sobre Mitologia Iorubá. Fiquei encantada com a riqueza das histórias e com uma cosmogonia muito bem elaborada. Claramente fiquei fascinada pela iabás, as orixás femininas. Outro dia alguém me perguntou porque tinha uma flagrante predileção pelo pequeno conto a seguir e eu respondi que para mim, aprender a amar profundamente inclui despir-se dos artifícios da conquista e dos jogos de poder. Assim aprendeu Oxum...










Oxum fica pobre por amor a Xangô

Oxum era conhecida como a amante ardorosa.
Tinha um corpo belo, de formas finas. 
Sua cintura deixava-se abraçar por um único braço.
Por muitas noites Oxum teve em seu leito amantes
aos quais propiciava momentos de raro prazer.
Oxum teve muitos amores,
de quem ganhou presentes preciosíssimos.
Oxum era rica. Tinha joias, ouro, prata,
vestidos maravilhosos, batas que causavam inveja,
e mais, pentes de marfim, espelhos de madrepérola
e tantos berloques e panos-da-costa.


Um dia chegou à aldeia um jovem tocador de tambor.
Era Xangô, um belo homem,
que desde logo atraiu o desejo de Oxum.
Inescrupulosamente, ofereceu-se a ele.
mas foi prontamente rejeitada.
Usando de todos os artifícios,
Oxum foi se aproximando de Xangô,
até que um dia ele a tomou numa calorosa relação sexual.
Mesmo assim Xangô não deixou de humilhar
e desdenhar a linda jovem.


Tempos depois,
a fama e a fortuna de Xangô lhe fugiram das mãos
e ele se viu empobrecido e esquecido
ainda que continuasse a ser excelente alabê.
Envergonhado, ele fugiu dali.
Foi viver longe do lugar e longe do som dos atabaques.
Mas continuava o glutão de sempre,
a viver com conforto e prazeres.
Oxum seguiu sendo sua amante e o consolou,
sacrificando por ele tudo o que tinha.
De tudo de seu dispôs Oxum, para o conforto de Xangô.
Primeiro as joias,depois os vestidos, as batas,
depois os pentes, os espelhos, de tudo foi se desfazendo Oxum.
Restou-lhe nada mais que seu vestido branco.
De tudo de seu desfez-se Oxum pelo amor de Xangô.
Restou a Oxum apenas um vestido branco
Que era tudo o que tinha para vestir.
Mas todo dia no rio lavava Oxum a veste branca.
De tanto lavar a única peça que lhe restara, 
a roupa branca tornou-se amarela.
Desde esse dia, Xangô amou Oxum.

Prandi, Reginaldo- Mitologia do Orixás- São Paulo, Companhia da Letras, 2001.

Imagem: Sá Cortes

Nasrudin e seu varal

Mais uma história engraçada de nosso querido Nasrudin....


O VARAL

Um vizinho bateu à porta do Nasrudin e pediu:

- Nasrudin, você me empresta seu varal? O de lá de casa quebrou.

- Um momento, disse Nasrudin - vou perguntar à minha mulher.

Momentos depois Nasrudin voltou e disse para o vizinho:

- Desculpe vizinho, mas não vou poder emprestar o varal. Minha mulher está secando farinha nele.

O vizinho, surpreso, exclamou:

- Mas Nasrudin, secando farinha no varal??!!

E Nasrudin respondeu:

É... quando não se quer emprestar o varal, até farinha se seca nele...

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A janela de Adélia

Poesia sempre me comove, me transpassa, me faz ir mais longe e bem perto... Poesia em tudo até na tramela de uma janela. Adélia faz assim: trevinhos, passarinhos, peixes para limpar, excrementos... Pretextos para saltar para este mundo transfigurado da poesia.


Janela

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira-à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pre fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento de Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minha intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

Prado, Adélia - Poesia Reunida - São Paulo, Siciliano, 1991

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A joia preciosa

Ontem eu e minha querida amiga, Bia del Picchia, fomos a um Encontro aberto com o Sheik Sufi Ismail Çimen, onde ele falou a respeito do sufismo, executou músicas místicas sufis e conduziu um dhiker, repetição dos nomes de Deus. Experiência interessante e tocante para mim, que há anos conto histórias desta tradição. Histórias que trazem ensinamentos de um caminho sagrado de busca do encontro com o Sublime. Ouvir este homem tão doce falar de assuntos profundos com tanta simplicidade me fez lembrar desta história em especial, cuja mensagem traz à memória outro mestre que sempre diz: " Prabhu Ap Jago!" Acordem!

A Joia preciosa

Num longínquo reino de perfeição, um rei poderoso e justo tinha uma esposa e duas crianças maravilhosas, um filho e uma filha.
E todos viviam em grande felicidade.
Um dia o pai chamou os filhos para junto de si e lhes disse:
- Chegou para vocês, como chega para todos, o momento em que deverão partir em direção a um outro mundo, a uma distância infinita. Lá vocês irão procurar uma joia preciosa, e assim que a encontrarem voltarão, trazendo-a com vocês.
 Cercados de grande segredo, os viajantes foram levados a uma nova e estranha terra onde quase todos os habitantes viviam na obscuridade e na noite de seu sono.
 O choque foi tão grande que o irmão e a irmã se separaram, perderam progressivamente o contato entre eles,e logo esqueceram tudo sobre sua origem.
Como os demais habitantes daquele país, eles iam de um lado para o outro, dormindo profundamente.
De tempos em tempos, sonolentos, viam sombras, miragens distantes do país de onde tinham vindo, ou então sonhavam com uma joia.
Mas na condição em que se encontravam eram incapazes de lembra-se da realidade, e pouco a pouco foram tomando os sonhos por ilusões.
Quando o rei tomou conhecimento disso, considerou a difícil situação em que seus filhos se encontravam e decidiu mandar um servidor de confiança para ajudá-los.
Este era um sábio e levou-lhes uma mensagem:
"Lembrem-se da missão de vocês; acordem do sono em que submergiram e  fiquem unidos."
Logo que ouviram a mensagem as duas crianças acordaram.
Graças à ajuda do guia enviado para libertá-las, elas puderam vencer os grandes perigos que ainda as separavam da joia preciosa.
Quando a encontraram as crianças voltaram para o reino da luz.
E lá foram mais felizes do que antes, e para sempre.


Histórias da Tradição Sufi- Rio de Janeiro: Edições Dervish- Instituto Tarika, 1993

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

E se...

E se naquela noite de festa fria de festa junina, ela tivesse perdido o pudor e o medo e  confessado que o amava...
E se no dia em que resvalou para a morte, ele pedisse a Deus que gostaria de revê-la e dizer tudo o que sentira por tanto tempo ...
E se Deus resolvesse atender este pedido e inesperadamente se esbarrassem distraídos a contemplar o verde turvo do amplo rio...
E se, como ele num arrombo de desejo propôs, fugissem para Londres e se amassem até suas forças se esgotarem, mitigando anos de fome de carne...
E se hoje neste portal entreaberto resolvessem que é absolutamente imprescindível dar espaço à loucura...
E se...
Responderia ele: Se minha avó usasse rodas seria ela um triciclo!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Gota d'água

Estavam ali, mais uma vez, sentados. Comiam quase em silêncio. Silêncio que lentamente se instalara entre eles. De quando em quando ele passava a discorrer sobre os assuntos de sempre, assuntos dele. Inesperadamente ela ergueu os olhos cansados do prato, olhou fixamente para ele e disparou comovida:  "Existe coisa mais triste do que um grande amor agonizando?" Ele, sem pressa alguma, olhou para as mesas vazias ao redor como que se procurasse o motivo da pergunta. 
Fitando, enfim, o infinito começou a tecer suas velhas teorias sobre relacionamentos: sobre como as coisas pioraram desde que as mulheres abandonaram sua essência, sobre a inequívoca necessidade masculina de uma poligamia consentida... Falou, falou e falou. Ela, apenas ouvia, soltando suspiros aqui e ali, exaurida até os ossos com aquela lenga lenga. Uma coisa, porém, era certa: ele sempre se mostrara assim, desde aquele longínquo e luminoso dia de outono em que se conheceram. Era, sobretudo, um teórico, cheio de teorias em que acreditava,mas nem se dava conta que não vivia em absoluto.
Ela de nada se arrependia:  muito havia aprendido com este amor que sentira.  Aquela longa explanação dele, entretanto, acabou por desligar os aparelhos de seu amor moribundo. Percebeu que não mais haveria sobressaltos, expectativas, nem desilusões. Apenas uma infinita e tediosa linha de mesmices. Chorou uma lágrima solitária pelo fim, levantou-se e partiu sem nenhuma necessidade de olhar pra trás.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O rabino sábio

A busca espiritual não é uma empreitada das mais tranquilas. Conhecimentos adquiridos, em qualquer tradição, apenas intelectualmente podem transformar-se em mero instrumento de poder. Segue uma pequenina história que ilustra bem este equívoco.



Um jovem acabara de completar seu treinamento espiritual e estava ansioso para tornar-se mestre. Mudou-se para uma nova cidade, onde tentou ensinar. Mas ninguém aparecia para ouvi-lo. O único movimento espiritual da cidade parecia ser os muitos seguidores de um rabino de um rabino sábio e bem conhecido. Frustrado, o jovem concebeu um plano para desmoralizar o velho mestre e obter alunos para si.  Capturou um pequeno pássaro e foi até onde o mestre ensinava, rodeado de seus discípulos. Segurando o pequeno pássaro na mão, dirigiu-se diretamente ao mestre.
- Se  és tão sábio, diz-me agora: este pássaro em minhas mão está vivo ou morto?
Seu plano era o seguinte: se o mestre dissesse que o pássaro estava morto, ele abriria as mãos, o pássaro sairia voando, o erro do mestre ficaria patente e os alunos deixariam de procurá-lo; se o mestre dissesse que o pássaro estava vivo, ele rapidamente o esmagaria nas mãos e, abrindo-as, diria: " Veja, o pássaro está morto". Novamente o mestre se revelaria equivocado e o jovem obteria seus alunos.
O jovem, confiante em si, sentou-se diante do mestre exigindo uma resposta.
- Se és tão sábio, diz-me agora: este pássaro em minhas mão está vivo ou morto?
O mestre olhou para ele com grande compaixão e disse apenas:
- Realmente, meu amigo, isto depende de você.


Histórias da alma; Histórias do coração: parábolas e narrativas do caminho espiritual e na contemporaneidade. São Paulo, Pioneira, 1994.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Elisa Lucinda e seu " Eis amor"

Por vezes, nos deparamos com pessoas completas, daquelas que cantam, dançam e sapateiam...Tive a honra de ter como mestra de como dizer poesia, esta mulher majestosa chamada Elisa Lucinda. Seus olhos verdes, naquela belíssima negritude, fascinam e sua voz cadenciada hipnotiza. Fiz vários cursos e a poesia de Elisa me traduziu, transportou e transtornou. Segue um poema de seu livro, "A Fúria da Beleza".






 Eis amor

Ex- amor, respeite os nossos segredos,
respeite os nossos enredos,
os versos que eu te dei,
o amor lindo que vivemos, ex-amor.


Eis amor: os caminhos, os teus rios,
nossas diferenças,
nossas perdas, nossas recompensas.
Ninguém sabe para onde vamos,
nem tampouco há alguma sentença.


Escrevo estes versos por respeito
aos versos que me deste, ex-amor.
Te agradeço, grande inspirador,
ainda que sejam estes
os últimos versos que eu te dou.

sábado, 12 de novembro de 2011

A Mitologia dança

Há alguns anos, estava eu numa tarde de quinta ainda em casa, quando recebi uma mensagem pelo meu bip (faz tempo mesmo) anunciando um evento no Sesc Consolação, que fica ao lado de onde moro: " Eu sou mais Zeus", Mitologia e Dança. Parecia uma revelação dos próprios deuses...
Lá fui e encontrei uma figura que haveria de mudar minha vida. A professora  que conduziu aquela oficina era uma loirinha baixinha e me pareceu bem excêntrica. Muito interessante. Levei minha filha, que assim que chegou me pediu que não a fizesse pagar o mico de me ver subir no palco e dançar. Assim que Ana Figueiredo, este era o nome da mestra, pediu eu dei um pulo da cadeira e fui, disposta totalmente para o que desse e viesse. Minha filha , é claro, foi embora.
Hoje não consigo lembrar a dança em si, mas a sensação de ter encontrado uma parte de mim que se perdera, sem sequer eu saber. Pedi o telefone da professora e tempos depois comecei a ter aulas com ela. Aulas diferentes de tudo o que imaginava. A técnica era a de Isadora Duncan, dançar a partir do plexo solar. Exigia consciência corporal profunda e para mim isto sempre foi bem difícil. Ainda mais porque Ana produzia  metáforas a partir de diversas mitologias e tínhamos tais imagens como ponto de partida para nossas improvisações. Tudo com o pano de fundo do feminino e da Deusa. Tempos de muita descoberta e ampliação... Até um espetáculo de dança e gesto fizemos.
Para arrematar Ana me introduziu num grupo de estudos da obra de Joseph Campbell chamado "Mythologycal  Roundtable" em que estudávamos , discutíamos e ritualizávamos aspectos das mitologias à luz deste mitólogo maravilhoso. Neste grupo conheci pessoas que seriam importantíssimas para minha caminhada como Bia e Cris do http://www.ofemininoeosagrado.blogspot.com/ e outras tantas pelas quais tenho admiração e afeto.
Existem pessoas portais que abrem o caminho para que cheguemos mais perto de nós mesmos e daquilo que viemos fazer. Ana foi um destes maravilhosos portais...Gracias, minha querida!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Quando Afrodite presenteia


Noite de Lua Cheia. Aniversário muito especial e resolvera fazer esta travessia numa viagem solitária a uma ilha paradisíaca. Há alguns anos assistira " Shirley Valentine" e se encantara com a possibilidade de ir além de seu mundo conhecido sozinha. A hora havia chegado e partiu rumo à nova e emocionante aventura.
Instalada na ilha tinha que comemorar como se deve: saiu para dançar no único lugar disponível. Chegou meio deslocada, meio estranha, porque até ali sempre tinha companhia, nem sempre das melhores, mas companhia. O local era muito animado cheio de turistas e nativos mas ela se retirou para um terraço de onde podia avistar a Lua toda e o mar refletindo sua luz. Fez um rápido balanço de sua vida  e a olhar para toda aquela beleza lembrou-se de Afrodite. Pediu com insistência um presente de aniversário: queria viver um romance, mas não como os que tinha tido  em que precisasse conquistar ninguém, nem mostrar serviço para comover o sujeito. Queria ser contemplada como aquela lua ;  que o amante atraído se apresentasse e pronto! Assim ficou perdida em pedidos e devaneios até que sentiu sede e foi buscar um refrigerante no bar.
Sentou-se para observar as pessoas a dançar Logo apareceu ao seu lado um nativo que lhe pediu um gole de seu refrigerante. Achando aquilo um tanto inconveniente simplesmente estendeu a latinha. Ele tomou um gole e a devolveu. Disse de sopetão que de verdade só queria sentir o gosto de sua boca naquele canudinho. Gente, que cantada mais barata!!!! Mas ele não parou por aí , continuou dizendo que o que desejava mesmo era sentir o gosto de sua boca em sua boca. Em condições normais de temperatura e pressão este era o momento em que ela se levantaria e sairia de perto daquele ser atrevido, mas era noite de Afrodite e fez o inimaginável: Levantou-se, foi até o sujeito e o beijou apaixonadamente. Nem ele esperava por esta. Dançaram a noite inteira e quando a convidou para ir para sua casa, ela relutou. Não era mulher de se deitar com ninguém num primeiro encontro. Mas ouviu em sussurro em seus ouvidos: "É meu presente! Você só vai se arrepender do tempo em que não ficar com ele! " E foi...
Nunca havia suspeitado que seu corpo pudesse responder assim a um corpo de homem. Prazer supremo que aproveitou até a última gota. Ele, diferente de todos que conhecera, a tratava apenas como  mulher. Ela, não ficava o tempo inteiro a narrar o jogo internamente, silenciou-se completamente pouco falando de si, de sua vida. Importava viver.
Intensos dias que chegaram a um fim. Na despedida seu corpo doía com a dor de saber que jamais encontraria aquele corpo de novo. Dor profunda e não catalogada.  Presente desta Mãe tem sempre tempo de validade. Que importa? Voltaria para sua vida mas nunca mais seria a mesma...

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O desejo do Oleiro

Nós humanos almejamos a perfeição, temos receio e desprezo pelo erro. Ansiamos nos tornar tão idealizados como alguns deuses. Nesta história surge Shiva, aquele que destroi para transformar, e amplia a percepção equivocada do pobre e dedicado oleiro, fazendo-o compreender que a imperfeição é que leva a vida adiante.

O desejo do Oleiro

Um oleiro almejava a perfeição em tudo o que fazia. Um dia, enquanto rezava para o Senhor Shiva, ali apareceu o próprio deus num raio brilhante de luz. Shiva sorriu e se ofereceu para satisfazer o maior desejo do humilde artesão. O oleiro pediu apenas que conseguisse fazer potes que não lascassem, rachassem ou quebrassem.
Shiva concedeu-lhe esse desejo. O oleiro retomou o seu trabalho e quando terminou o pote seguinte, ele o deixou cair para ver se quebrava. O pote permaneceu intacto. Ele o atirou contra uma parede. Não importava o que fizesse, nem mesmo um arranhão aparecia no pote.
Logo corriam boatos sobre os poderes do oleiro. As pessoas vinham de tudo quanto era lugar para comprar seus artigos. Seu sucesso deu-lhe grande felicidade, até que ele soube que estava tirando o emprego de outros oleiros. Logo, ele também, tinha poucos fregueses.
Finalmente, o oleiro chorou enquanto rezava. E perguntou a si mesmo: " Como consegui criar uma situação tão embaraçosa?"
Shiva novamente teve piedade dele e apareceu mais uma vez. O oleiro fez reverência a Shiva e disse: " Eu vejo agora que os seres humanos precisam de imperfeições para viver. Por favor, retire o seu presente".  O seu desejo foi concedido e, depois daquele dia em diante, o oleiro sentia uma gratidão extasiante com as menores imperfeições em seu próprio trabalho e no de outras pessoas.

Mellon, Nancy - Corpo em equilíbrio: o poder do mito e das histórias para despertar e curar as energias físicas e espirituais- São Paulo, Cultrix, 2010

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Antígona

Édipo é, sem dúvida, um dos personagens mais conhecidos da mitologia grega. Aquele que matou o pai, casou com a mãe e a quem Freud consagrou em seu complexo instaurador da psique. História mais que batida. O que muita gente desconhece é a história dos  filhos que nasceram de sua relação incestuosa com Jocasta. Assim que soube da tragédia que se abatera sobre ele, Édipo furou os próprios olhos e banido de seu reino partiu para o exílio. A única filha que o acompanhou foi Antígona, que permaneceu junto ao pai até a sua morte.
Quando retornou a Tebas  seus irmãos, Polinice e Etéocles,  brigavam pelo trono.Polinice se alia ao rei de Argos, de quem era genro, e ataca Tebas . Luta sangrenta que acaba sem vencedores. Morrem ambos e o tio, Creonte, herda o trono. O novo rei manda sepultar Etéocles com todas as honras, mas ordena que Polinice seja deixado onde caiu, insepulto. Quem desobedecer sua ordem pagará com a vida.
Mais uma vez surge a leal Antígona e pede ao rei que a deixe sepultar seu irmão, para que este não seja condenado a vagar cem anos ao largo do Estige sem poder passar para o outro lado. Creonte recusa terminantemente, o "traidor" deveria sofrer punição exemplar. Antígona pede ajuda a sua outra irmã, Ismênia, que reage com medo. Resolve fazê-lo ela mesma e acaba presa. Seu noivo, filho de Creonte, se suicida por não poder salvar a amada que é enterrada viva.

Assim fala a Antígona de Sófocles quando inquirida por Creonte:

_ Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas mas são irrevogáveis; não exitem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram! - Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive,como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte? Assim, a sorte que me  reservas é uma mal que não se deve levar em conta; muito mais grave seria admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!

O Coro louva sua integridade, mas hoje em dia Antígona parece meio fora de moda. Princesa, iria se casar com o filho do rei...Cuide do seu futuro de glórias e deixe os perdedores para lá, diria um Coro mais moderno.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Nasrudin dá ouvidos a conselhos

Nosso personagem mais divertido descobre os perigos de ouvir conselhos indiscriminadamente




Os Melhores Conselhos


Nasrudin começou a construir uma casa : seus amigos, que tinham cada um sua própria casa, e eram carpinteiros, pedreiros, o rodearam de conselhos. Mullá estava radiante. Um após outro, e às vezes todos juntos, disseram-lhe o que fazer. Nasrudin seguia docilmente as instruções que cada um lhe dava.
Quando a construção terminou, ela não se parecia em nada com uma casa.
- Que curioso! - disse Nasrudin - e contudo eu fiz exatamente aquilo que cada um de vocês me tinha dito para fazer!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Poesia entre pedras

Poeta tem olhar diferente, meio que contemplando o nada e vendo tudo. Acha alma escondida em qualquer lugar. Até nas pedras... Cora Coralina é única, com um nome que já soa poesia, busca no tacho de doce requintes de palavras que tocam fundo.Entre as pedras no caminho de seu caro amigo Drummond cria sua singela poética.






DAS PEDRAS

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete florido
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Pele de foca

Existem histórias que tocam profundamente a alma feminina. Parecem nos lembrar de algo perdido ou esquecido há tempos, mas que nos chama bem lá de dentro. Esta é uma destas. Contada assim por Clarissa Pínkola em seu "Mulheres que correm com os lobos", graciosamente acorda adormecidas...

Pele de foca, pele de alma



Houve um tempo, que passou para sempre e que irá logo estar de volta, em que um dia corre atrás do outro de céus brancos, neve branca... e todos os minúsculos pontinhos escuros ao longe são pessoas, cães, ou ursos.
Nesse lugar, nada viceja gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas se acostumaram a trazer consigo seus parkas, mamleks e botas, já de propósito. Nesse lugar, as palavras se congelam ao ar liv re, e frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios de quem fala e descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que foi dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha Annuluk, a avó, a velha feiticeira que é a própria Terra. E foi nessa terra que vivia um homem... um homem tão solitário que, com o passar dos anos, as lágrimas haviam aberto fundos abismos no seu rosto.
Ele tentava sorrir e ser feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia bem. No entanto, sentia falta de companhia. Às vezes, lá nos bancos de areia, no seu caiaque, quando uma foca se aproximava, ele se lembrava de antigas histórias sobre como as focas haviam um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia nessas ocasiões uma solidão tão profunda que as lágrimas escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.
Uma noite ele caçou até depois de escurecer, mas sem conseguir nada. Quando a lua subiu no céu e as banquisas de gelo começaram a reluzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no mar e seu olhar aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos sobre a velha rocha.
Ele remou lentamente e com os remos bem fundos para se aproximar, e lá no alto da rocha imponente dançava um pequeno grupo de mulheres, nuas como no primeiro dia em que se deitaram sobre o ventre da mãe. Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano a não ser na lembrança — e ele ficou ali olhando. As mulheres pareciam seres feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com gotículas prateadas como as do salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e graciosos.
Elas eram tão lindas que o homem ficou sentado, atordoado, no barco, e a água nele batia, levando-o cada vez mais para junto da rocha. Ele ouvia o riso magnífico das mulheres... pelo menos elas pareciam rir, ou seria a água que ria às margens da rocha? O homem estava confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e, quase sem pensar, como se fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou uma das peles de foca ali jogadas. Ele se escondeu por trás de uma saliência rochosa e ocultou a pele de foca dentro do seu qutnquq, parka.
Logo, uma das mulheres gritou numa voz que era a mais linda que ele já ouvira... como as baleias chamando na madrugada... ou não, talvez fosse mais parecida com os lobinhos recém-nascidos caindo aos tombos na primavera... ou então, não, era algo melhor do que isso, mas não fazia diferença porque... o que as mulheres estavam fazendo agora?
Ora, elas estavam vestindo suas peles de foca, e uma a uma as mulheres-focas deslizavam para o mar, gritando e ganindo de felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas procurava por toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar nenhum. O homem sentiu-se estimulado — pelo quê, ele não sabia. Ele saiu de trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
— Mulher... case-se... comigo. Sou um... homem... sozinho.
— Ah — respondeu ela. — Eu não posso me casar, porque sou de outra natureza, pertenço aos que vivem temeqvanek, lá embaixo.
— Case-se... comigo — insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e você poderá ficar ou ir embora, como preferir.
A jovem mulher-foca ficou olhando muito tempo o rosto do homem com olhos que, se não fossem suas origens verdadeiras, pareciam humanos.
— Irei com você — disse ela, relutante. — Dentro de sete verões, tomaremos a decisão.
E assim, com o tempo, tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk. A criança era ágil e gorda. No inverno, a mãe contava a Ooruk histórias de seres que viviam no fundo do mar enquanto o pai esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a mãe levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da ventilação as nuvens e todas as suas formas. Só que, em vez de falar das formas do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias da vaca-marinha, da baleia, da foca e do salmão... pois eram essas as criaturas que ela conhecia.
No entanto, à medida que o tempo foi passando, sua pele começou a ressecar. A princípio, ela escamou e depois passou a rachar. A pele das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo da sua cabeça, a cair no chão. Ela se tornou naluaq, do branco mais pálido. Suas formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse, iam ficando mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear porque sua vista estava escurecida.
E as coisas iam dessa forma até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que era sua mãe.
— Você escondeu minha pele de foca há sete longos anos, e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que me seja devolvido aquilo de que sou feita — gritou a mulher-foca.
— E você, mulher — vociferou o marido. — Você me deixará se eu lhe der a pele.
— Não sei o que eu faria. Só sei que preciso daquilo a que pertenço.
— E você me deixaria sem mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.
Com essas palavras, o marido afastou com violência a pele da porta e desapareceu noite adentro.
O menino adorava a mãe. Ele tinha medo de perdê-la e, por isso, chorou até dormir... só para ser acordado pelo vento. Um vento estranho... que parecia chamálo.
— Oooruk, Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluksaté a metade. Ao ouvir seu nome chamado insistentemente, ele saiu correndo na noite estrelada.
— Ooooooorukkk.
O menino correu até o penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme. Seus bigodes lhe caíam até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
— Ooooooorukkk.
O menino foi descendo o penhasco de qualquer jeito e bem junto à base tropeçou numa pedra, não, numa trouxa, que rolou de uma fenda na rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto como milhares de açoites de gelo.
— Ooooooorukkk.
O menino abriu a trouxa e a sacudiu: era a pele de foca da sua mãe. Ah, ele sentia seu perfume na pele inteira. E, enquanto mergulhava o rosto na pele de foca e respirava seu cheiro, a alma da mãe penetrava nele como um súbito vento de verão.
— Ah — exclamou ele com alegria e dor, e levou novamente a pele ao rosto. Mais uma vez, a alma da mãe passou pela dele. — Ah!!! — gritou ele de novo, porque estava sendo impregnado pelo amor infindo da mãe.
E a velha foca prateada ao longe mergulhou lentamente para debaixo d'água.
O menino escalou o penhasco, voltou correndo para casa com a pele de foca voando atrás dele e se jogou para dentro de casa. Sua mãe contemplou o menino e a pele e fechou os olhos, cheia de gratidão pelo fato de os dois estarem em segurança. Ela começou a vestir sua pele de foca.
— Ah, mãe, não! — gritou o menino. Ela apanhou o menino, ajeitou-o debaixo do braço e saiu correndo aos trambolhões na direção do mar revolto.
— Ai, mamãe, não me abandone! — implorava Ooruk. E logo dava para se ver que ela queria ficar com o filho, queria mesmo, mas alguma coisa a chamava, algo que era mais velho do que ele, mais velho do que ela, mais antigo que o próprio tempo.
— Ah, mamãe, não, não, não — choramingou a criança. Ela se voltou para ele com uma expressão de profundo amor nos olhos. Segurou o rosto do menino nas mãos e soprou para dentro dos pulmões do menino seu doce alento, uma vez, duas, três vezes. Depois, com o menino debaixo do braço como uma carga preciosa, ela mergulhou bem fundo no mar e cada vez mais fundo. A mulher-foca e seu filho não tinham dificuldade para respirar debaixo d'água.
Eles nadaram muito para o fundo até que entraram no abrigo subaquático das focas, onde todos os tipos de criaturas estavam jantando e cantando, dançando e conversando, e a enorme foca prateada que havia chamado Ooruk de dentro do mar da noite abraçou o menino e o chamou de neto.
— Como você está se saindo lá em cima, minha filha? — perguntou a grande foca prateada.
A mulher-foca afastou o olhar e respondeu.
— Magoei um ser humano... um homem que deu tudo para que eu ficasse com ele. Mas não posso voltar para ele, porque, se o fizer, estarei me transformando em prisioneira.
— E o menino? — perguntou a velha foca. — Meu neto? — Ele estava tão orgulhoso que sua voz tremia.
— Ele tem de voltar, meu pai. Ele não pode ficar aqui. Ainda não chegou o seu tempo de ficar conosco. — Ela chorou. E juntos eles choraram.
E assim passaram-se alguns dias e noites, exatamente sete, período durante o qual voltou o brilho aos cabelos e aos olhos da mulher-foca. Ela adquiriu uma bela cor escura, sua visão se recuperou, seu corpo voltou às formas arredondadas, e ela nadava com agilidade. Chegou, porém, a hora de devolver o menino à terra. Nessa noite, o avô-foca e a bela mãe do menino nadaram com a criança entre eles. Vieram subindo, subindo de volta ao mundo da superfície. Ali eles depositaram Ooruk delicadamente no litoral pedregoso ao luar.
— Estou sempre com você — afiançou-lhe sua mãe. — Basta que você toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu, faca, minhas esculturas de pedra de focas e lontras, e eu soprarei nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas canções.
A velha foca prateada e sua filha beijaram o menino muitas vezes. Afinal, elas se afastaram, saíram nadando mar adentro e, com um último olhar para o menino, desapareceram debaixo d'água. E Ooruk, como ainda não era a sua hora, ficou.
Com o passar do tempo, ele cresceu e se tornou um famoso tocador de tambor, cantor e inventor de histórias. Dizia-se que tudo isso decorria do fato de ele, quando menino, ter sobrevivido a ser carregado para o mar pelos enormes espíritos das focas.  Agora, nas névoas cinzentas das manhãs, ele às vezes ainda pode ser visto, com seu caiaque atracado, ajoelhado numa certa rocha no mar, parecendo falar com uma certa foca fêmea que freqüentemente se aproxima da orla. Embora muitos tenham tentado caçá-la, sempre fracassaram. Ela é conhecida como Tanqigcaq, a brilhante, a sagrada, e dizem que, apesar de ser foca, seus olhos são capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias, selvagens e amorosas.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Nasrudin e a justiça divina

Outro dia minha grande amiga Bia do blog http://ofemininoeosagrado.blogspot.com/ me contou um episódio de Nasrudin que eu ainda não tinha ouvido.

A Justiça de Deus




Certo dia  Nasrudin chegou à praça com dez bananas para distribuir entre  dez crianças. Tarefa fácil e prevísivel. Consultou os presentes se deveria fazer a divisão pautado pela justiça dos homens ou pela justiça de Deus. Todos unanimemente responderam que deveria sempre seguir a justiça de Deus que é maior do que tudo. Nasrudin assentiu e deu quatro bananas para um , três para outro, duas para mais uma criança , uma para outra e se foi satisfeito pelo caminho.


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