segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vincent e a clínica de olhos


Era segunda feira. Madrugada. Não me lembro o motivo, mas minha tia tinha de fazer um exame oftalmológico num posto do INSS. Talvez uma perícia. Nestes casos há que se chegar cedo. Bem cedo.Para se ter mais tempo para esperar, para se sentir mal, quase sem dignidade.Chegamos um pouco antes de hora agendada.
Meu Deus, que mar de gente!
Alguém indicava uma sala para triagem e depois espera, espera e mais espera. Fico a observar as pessoas apinhadas dentro de uma sala cheia de cadeiras.Algumas nitidamente com olhos doentes . Outras, nem tanto. Nas paredes alguns quadros pendurados, uma reprodução de Van Gogh.
As atendentes chamavam sem parar: "João Francisco dos Santos... Minervina Ferreira... Pedro França..." Algumas vezes o nome era ouvido e a pessoa parecia não se reconhecer, não ter forças para se mover. Levantavam-se como zumbis e dirigiam-se ao guichê. "Sala 47".
Pude ouvir algumas conversas perdidas em que as pessoas sequer sabiam o número de seus documentos que esqueceram em casa e logo eram despachadas. Teriam que começar tudo de novo. Depois de preencher a detalhada ficha, voltava-se a sala para aguardar mais.
O exame, por fim, era feito numa sala meio sombria onde as pessoas entravam e eu tinha a sensação que nunca mais saíam. Comecei a fantasiar que eram abduzidos ou coisa semelhante.
Um senhorzinho ao meu lado teve uma crise. Diabético, tomara insulina e nada comera. Ao menos foi atendido prontamente.
Aos poucos a sala começava a esvaziar. Muitos contavam conformados que ali já chagaram às 4 da manhã para sair às 3 da tarde. Minha tia se impacientava. Quando sairia o resultado! Eu trocava olhares de mútua comprensão com o senhorzinho diabético que também aguardava seu resultado.
De repente o Sr. João Francisco dos Santos, muitas vezes chamado, se deparou com o Van Gogh. Contemplou o quadro por um tempo, meio de longe. Chegou mais perto e tocou a gravura. Tateou cada centimetro como que hipnotizado. Seus olhos prejudicados buscando captar a grandeza do pintor. Passou uma eternidade ali, a tocar, a olhar. Eu o observava atenta. Senti uma leve brisa dentro daquele inferno interminável. Ele, pressentindo meu olhar, afastou-se constrangido.
Limitei-me a sorrir. Um rasgo de beleza, por seus olhos percebido, nos devolveu a humanidade.





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