quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fahima

Sempre que ouço uma história pela primeira vez se ela me fizer vibrar eu sei que será minha amiga e virá sempre que eu a invocar. Pois histórias, são como entidades: possuem vida e vontade próprias. Se eu quiser contar uma apenas porque acho que vai cair bem geralmente a coisa sai meio sem graça, sem brilho e não cumpre a missão de tocar a alma de ninguém. Aprendi a ser humilde. Apenas uma "médium" de histórias.
Lembro-me da primeira vez que vi Regina Machado numa apresentação. Um espetáculo. Uma grande mestra de seu ofício. Narrou vários contos tradicionais e entre eles este que se tornou meu companheiro de muitas jornadas. Passei a contar de memória, meio que adaptando aqui e ali, até que o encontrei num antigo livro de Idries Shah em inglês. Fiz uma tradução introduzindo alguns elementos utilizados por Regina. Apresento-lhes a minha Fahima que "com as artes que só as mulheres têm" transformou mundos.

Fahima, a “Compreensiva”

Era uma vez, na cidade de Basra, uma jovem de extraordinária beleza e de
uma sabedoria ímpar. Sabia desvendar enigmas e resolver questões difíceis e
complicadas. Tinha igualmente o dom de penetrar profundamente na alma das
pessoas e compreendê-las a ponto de predizer exatamente aquilo que iriam fazer.

Seu nome era Fahima, a “Compreensiva”. Ela havia herdado uma grande fortuna,
e todos os jovens rapazes de sua cidade – bem como um grande número dos
velhos- gostariam de se casar com ela, boa parte pensando em desfrutar de sua
riqueza. Mulheres também buscavam sua amizade. Aqueles que não estavam
interessados em seu dinheiro eram curiosos a respeito da origem de tanta graça
e sabedoria; e Fahima se via sempre cercada por aduladores, pretendentes,
desocupados e pessoas que intentavam tirar algum proveiro dela.

A jovem passou a isolar-se e tornar difícil às pessoas ter acesso a ela. Certo dia,
quando estava no mais alto terraço de seu palácio, em silêncio contemplando os
últimos raios do Sol e o surgir da Lua,o príncipe de Basra que por ali passava a avistou
no exato instante em que a leve brisa lhe fez cair o véu. Ele se encantou com
tanta beleza e decidiu imediatamente desposá-la.

O príncipe acampou nas imediações do palácio de Fahima e levantou um cerco
ao seu redor. Cantou-lhe canções, fez demonstrações de luta, mostrava-se sempre
vestido com os mais esplêndidos trajes e lhe mandava poemas e declarações de
amor. Entre todas estas atividades ele achava tempo para caçar, praticar esgrima,
ir à cidade para inspecionar as últimas cargas que chegavam de terras distantes, e
se comportava exatamente como os príncipes de sua época.

Fahima, como sabemos, era sábia; e ela havia gostado do que vira e ouvira
do príncipe e o havia compreendido melhor do que ele mesmo poderia se
compreender.

Um dia,entretanto, ela saiu de seu palácio e se viu raptada e levada
ao castelo do príncipe; ela não se surpreendeu como alguns de nós teríamos nos
surpreendido. Quando ele a aprisionou numa masmorra sem nenhuma discussão
ela percebeu que o príncipe assim o fez porque tinha se convencido de que ela
não se casaria com ele se não mostrasse sua assertividade e força; porque como
vocês já devem ter percebido ele tinha o hábito de chegar a conclusões sobre
seus problemas sem suficiente reflexão.

Após alguns dias o príncipe foi até a cela onde aprisionara Fahima e lhe disse
através das grades:
“ Fahima, eu quero desposá-la. Sou rico, sou jovem, forte, belo e a tenho em
meu poder. Posso fazer o que bem quiser com você. Entretanto, eu só desejo
agradá-la e me tornar um marido interessado e devotado”.
A jovem lhe respondeu:

“ Nem por seu ouro, nem pelo mel;
não por persuasão, nem por coação;
não pela ira, nem pela presunção”.

Dia após dia o príncipe se dirigia à masmorra e uma conversa semelhante
acontecia. Ele desfiava todas as razões pelas quais qualquer mulher de juízo
aceitaria seu pedido, mas Fahima as rejeitava todas.
Finalmente outros assuntos começaram a ocupar-lhe a mente.
Depois de alguns meses decidiu viajar à Bagdá
e a novidade chegou aos ouvidos de Fahima pelas fofocas dos carcereiros.

Durante todo este tempo a jovem não ficara desocupada, mas lentamente havia
cavado um túnel e tinha os meios de escapar de sua prisão.

Tão logo o príncipe partiu, Fahima entrou em sua passagem secreta e se
encontrou em liberdade. Correu até seu palácio, equipou uma caravana com os
mais velozes cavalos de Basra e partiu imediatamente para a capital Bagdá,
chegando muito antes de noso indolente príncipe que se deteve várias vezes
pelo caminho divertindo-se em banquetes, caçadas outras coisas próprias dos
príncipes de seu tempo.

Quando ele enfim chegou à Bagdá visitou amigos, saiu a caçar com falcões e se
entreteve com toda a sorte de divertimentos comportando-se como os demais
príncipes faziam naqueles dias.

Certa tarde, passando por uma luxuosa mansão ele avistou uma bela jovem
olhando por uma janela. Disse consigo: “Esta adorável criatura é quase igual
a Fahima de Basra”. E ele acertou em cheio, pois era ninguém mais do que
a própria Fahima que, com as artes que só as mulheres têm com pós, henas,
cremes , perfumes e véus, se transformara numa outra mulher e se estabelecera
em Bagdá com o único propósito de se encontrar com o príncipe.
Este no mesmo instante fez-se apresentar à jovem e lhe disse: “Mulher, tu és a
mais bela que os meus olhos já contemplaram. Case-se comigo”.Ela aceitou e
eles se casaram. Fahima tornou-se uma princesa e deu à luz no devido tempo a
uma menina. O príncipe estava muito satisfeito.

Depois de um tempo, entretanto, ele decidiu sair a viajar novamente e partiu para
Trípoli. Fahima entristeceu-se profundamente, deixou sua filha com uma serva de
confiança e partiu também.

Chegou a Trípoli bem antes que seu marido, e imaginem, com as artes que só
as mulheres têm, se transformou numa outra mulher, alugou uma suntuosa casa
e esperou. O príncipe ao chegar a Trípoli passou a se divertir como antigamente
até que ao passar em frente a certa casa viu uma bela mulher contemplando o
crepúsculo. Fez-se introduzir à casa e ao se deparar com Fahima ( quem mais ?)
disse: “Mulher, tu és a mais bela que os meus olhos já viram. Case-se comigo.”
Mais uma vez se casaram. Ela teve mais um filho e nosso príncipe parecia muito
feliz.

Depois de alguns meses o desejo de aventuras cresceu novamente dentro do
peito do príncipe, ele embarcou num navio e partiu para Alexandria. Fahima mais
uma vez o seguiu, porém num navio mais rápido chegou antes e com as artes que
só as mulheres têm transformou-se ainda numa outra mulher. Ele lá chegando ,
um dia se deparou com aquela atraente mulher que passeava num jardim e lhe
disse: “Mulher, tu és a mais bela que os meus olhos ousaram contemplar. Case-se
comigo”. Casaram-se, mais uma criança nasceu e tudo parecia bem.
Após um ano ou dois, o príncipe começou a ficar inquieto, sentindo saudades de
sua terra natal. Partiu, então, de volta para Basra.

Fahima embarcou num navio veloz e alcançou
a cidade a tempo de estar novamente sentada em sua masmorra
no momento em que o príncipe chegou de viagem e foi imediatamente procurá-la.

Quando a viu , o príncipe começou, pela primeira vez, a sentir remorso e
vergonha. “Ah, Fahima!”, ele lhe disse, “eu ainda gostaria de me casar com você.
Eu te tratei muito mal deixando-a aqui encarcerada por tantos anos. Eu não sou o
mesmo homem que partiu. Sou ainda pior.Fiz coisas que não deveria ter feito. Não
sou digno de você e de fato, nem de outros dos quais você nada sabe”.
Fahima disse: “Você está pronto a me contar tudo o que aconteceu enquanto você
esteve fora?”
” Posso até contar”, disse o príncipe, “mas isto não fará nenhuma diferença. Sei
que você é sábia, mas mesmo assim não poderá pensar em algo para solucionar
meus problemas que criei por minha estupidez e falta de reflexão”.
Ela insistiu: “Se você me contar toda a história sem omitir um único detalhe eu
poderei sugerir algo”.
O príncipe então contou-lhe como ele havia encontrado e se casado com as belas
mulheres em Bagdá, Trípoli e Alexandria, como ele havia tido três lindos filhos e
abandonado todos e como gostaria de ter agido diferente.
“ Se não fosse por mim” , disse Fahima, “você teria feito estas coisas de forma
que não haveria volta. Se assim fôra, você não teria como ir além de sua própria
estupidez e outros teriam se ferido pelo seu egoísmo. Como de fato aconteceu, eu
tenho como reverter esta situação”.
“ O que está feito não pode ser desfeito”, disse o príncipe, “Quanto ao resto do
que você falou eu não consegui entender nada”.
“ Vá até à sala do trono”, disse Fahima, “e espere até que alguém seja anunciado
a sua presença. Alguém que você deve receber imediatamente”.

O príncipe fez exatamente o que ela pediu e depois de algum tempo Fahima
vestida ricamente e levando seus três filhos chegou aos portões do palácio e foi
introduzida à sala do trono.

Levou algum tempo para que o príncipe pudesse compreender que as QUATRO
mulheres eram de fato UMA e que as TRÊS crianças tinham UMA só mãe. Mas
quando ele percebeu o que Fahima havia feito apesar de tudo o que fizera com
ela , foi tomado por uma grande alegria e se tornou um novo homem.
Aquela foi uma família feliz.

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