quarta-feira, 20 de abril de 2011

Quando piso em folhas secas...


Certa feita encontrei um livrinho muito interessante sobre contos de amores e desamores, encontros e desencontros nas diversas culturas e mitologias. Gostei bastante e em especial desta história africana que relata o primeiro encontro entre um homem e uma mulher; o nosso velho amigo sapo tem um papel crucial. O livro já traz no nome as pequenas diferenças que nos distanciam e aproximam: contos da vontade dela e do desejo dele. Vamos, pois, a história...


As folhas secas

Deus criou pois o mundo, árvores, prados e florestas, animais de pêlo duro, pássaros, animais rastejantes. Após o que modelou um homem e uma mulher, construiu para ele uma cabana num campo na orla de um bosque, e para ela uma choças à beira de um riacho. Entre eles traçou um caminho. Mas nem um nem o outro o viu. Ambos estavam cegos. Seus olhos assemelhavam-se aos dos recém nascidos, com a porta das pálpebras ainda fechada. Assim viveram um momento, sem nada que os atraísse um para o outro, e Deus, durante todo esse tempo, pôde dormir sossegado.

Mas um dia, quando estavam pegando água diante de suas casas, veio-lhes no mesmo instante o mesmo sentimento irracional e persistente: no final do caminho reto que atravessava o matagal havia uma presença infinitamente preciosa para suas vidas, seus sonhos. Deus, vendo-lhes nascer o desejo, imaginou, em sua alta luz, que em breve um iria até o outro. Quis saber quem, homem ou mulher, daria o primeiro passo. Fez com que caísse uma chuva de folhas secas. "Quando eu as ouvir farfalhar", disse consigo mesmo, "acordarei. Verei quem está caminhando sobre elas, e portanto quem dos meus dois filhos é mais vulnerável à febre amorosa." Tendo assim pensado, foi deitar em seu leito de nuvens.

A mulher, naquela noite, saiu à porta de sua casa, e procurando aqui e ali alguma oisa para comer colocou por acaso a mão num sapo barrigudo. O animal cuspiu-lhe veneno nos olhos e, coaxando desesperadamente, saltou no meio das plantas da margem. a mulher, exasperada, esfregou o rosto. A unha do dedo mínimo arranhou-lhe os olhos. Sua pálpebras se abriram. Ela enxergou, espantou-se. Lá em cima havia um céu, em volta a terra, um rio cintilante, árvores, matas, mil cores fugidias, um velho sol poente no horizonte oeste, uma casa mais adiante, e na frente de seus pés descalços um caminho que levava até aquele lugar aprazível. Viu também as folhas secas. Pressentiu a armadilha divina. "Se eu for aonde quer o fogo que está me aguilhoando, o Velho Pai ficará sabendo", disse consigo mesma a finória. "Ora, eu preferia que ele nada visse." Sentou-se, pensou num meio de enganar as orelhas divinas, depois sorriu, maliciosa, e foi correndo encher um balde no riacho próximo, regou as folhas secas e amoleceu-as o suficiente para que não estalassem. Feito isso, foi , prudente e prestamente, na ponta dos pés à casa daquele que queria conhecer. Deus agitou-se no sono, resmungou e voltou aos seus sonhos.

A mulher achou o homem admiravelmente bem feito. Abriu-lhe os olhos com duas vigorosas unhadas. Ele achou a companheira exatamente igual àquela que lhe povoava os devaneios de cego. Ficaram emocionados, tocaram-se, tremeram tanto que se deitaram, tateando encontraram os caminhos desejados, gozaram, perguntaram-se como tinham podido viver sem os olhares, sem os rostos um do outro. de novo treparam. Finalmente a mulher disse num sopro maravilhado:
- Olha, o sol está nascendo. Deus não tardará a sair da cama, e eu não gostaria que nos surpreendesse aqui, juntos, um em cima do outro. Homem, tenho que partir. Amanhã à noite irás me procurar.
O homem viu a manhã pela primeira vez, viu sua longa sombra, viu-a encolher-se, viu o sol a pino secar as folhas mortas e novamente as sombras estendendo-se até o anoitecer. Finalmente viu a lua e seu rebanho de estrelas sair dos currais celestes. Calçou então as sandálias e cantarolando baixinho foi namorar.

Seu calcanhar esmagou pesadamente as folhas. Elas farfalharam, estalaram. Não deu importância, seu espírito estava inteiramente voltado para o novo prazer. Ouviu trovejar por cima de sua cabeça:
- Onde estás pois indo, meu filho?
O outro curvou as costas, colocou as mãos sobre o crânio.
- És tu - continuou a voz - o primeiro a sucumbir à febre do amor. Até o fim dos tempos, que assim seja. Irás até a mulher e a mulher esperará que lhe implores por amor.
- Mas, Senhor - arriscou o homem.
Não disse mais palavra. Estava apaixonado e temia para a amada o julgamento divino. Apenas ele, sabe que a mulher é sempre a primeira a querer. É seu desejo que tudo acende. "Olha-me", diz, e o homem vem a ela, e o Velho Pai, lá no alto, sorri em seu sono.

Gougand, Henri - O livro dos amores - São Paulo, Martins Fontes, 2001

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