quinta-feira, 1 de março de 2012

De como a Verdade entrou num palácio...

Este é um conto que Regina Machado, uma da melhores contadoras de história que conheço, encontrou num livro de Malba Tahan, o fantástico escritor de " O Homem que Calculava". Quando pequena era fascinada por este livro. A tradição árabe é rica em contos maravilhosos e este professor brasileiro se encantou com eles , passou parte de sua vida a estudar e disseminar histórias. Seu nome  verdadeiro era Júlio César de Mello e Souza. Ele próprio trasvestiu-se de fábula e criou mundos...





Uma Fábula sobre a Fábula


Allah Hu Akbar! Allah Hu Akbar!

Deus criou a mulher e junto com ela criou a fantasia. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer um palácio por dentro e escolheu o mais suntuoso de todos, onde vivia o grande sultão Haroun Al-Raschid. Vestiu seu corpo apenas com um véu transparente e pouco depois chegou à porta do magnífico palácio. Assim que o guarda apareceu e viu aquela mulher sem nenhuma roupa, ficou desconcertado e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu com firmeza:
- Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com seu senhor, o sultão Haroun Al-Raschid.
O guarda entrou e foi falar com o grão-vizir. Inclinando-se diante dele, disse:
- Senhor, lá fora está uma mulher pedindo para falar como nosso sultão, mas ela só traz um véu completamente transparente cobrindo seu corpo. 
- Quem é essa mulher? - perguntou o grão-vizir com viva curiosidade.
- Ela disse que se chama Verdade, senhor - respondeu o guarda.
O grão-vizir arregalou os olhos e quase gaguejou:
- O quê? A Verdade em nosso palácio? De jeito nenhum, isso eu não posso permitir. Imagine o que ia ser de mim e de todos aqui se a Verdade aparecesse diante de nós? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Pode mandar essa mulher embora, imediatamente.
O guarda voltou e transmitiu à Verdade a resposta do seu superior. A Verdade teve que ir embora, muito triste.

Acontece que...

Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. A Verdade não se deu por vencida e foi procurar roupas para vestir. Cobriu-se dos pés à cabeça com peles grosseiras, deixando apenas o rosto de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda abriu a porta e encontrou aquela mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria.
Com voz severa ela respondeu:
- Sou a Acusação e exijo uma audiência com o grande senhor desse palácio.
Lá se foi o guarda falar com o grão-vizir e, ajoelhando-se diante dele, disse:
- Senhor, uma estranha mulher envolvida em vestes malcheirosas deseja falar com nosso sultão.
- Como ela se chama? - perguntou o grão-vizir.
- O nome dela é Acusação, Excelência.
O grão-vizir começou a tremer, morto de medo:
- Nem pensar. Já imaginou o que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Estaríamos todos perdidos, sem exceção. Mande essa mulher embora imediatamente.
Outra vez a Verdade virou as costas e se foi tristemente pelo caminho. Ainda dessa vez ela não se deu por vencida.

E isso porque...

Deus criou a mulher e junto com ela criou o capricho.
A Verdade buscou pelo mundo as vestes mais lindas que pôde encontrar: veludos e brocados, bordados com fios de todas as cores do arco-íris. Enfeitou-se com magníficos colares de pedras preciosas, aneis, brincos e pulseiras do mais fino ouro e perfumou-se com essência de rosas. Cobriu o rosto com um véu bordado de fios de seda dourados e prateados e voltou, é claro, ao palácio do sultão Haroun Al-Raschid.
Quando o chefe da guarda viu aquela mulher deslumbrante como a Lua, perguntou quem ela era.
 E ela respondeu, com voz doce e melodiosa:
- Eu sou a Fábula e gostaria muito de encontrar-me, se possível, com o sultão deste palácio.
O chefe da guarda foi correndo falar com o grão-vizir, até esqueceu-se de ajoelhar-se diante dele e foi logo dizendo:
- Senhor, está lá fora uma mulher tão linda, mas tão linda, que mais parece uma rainha. Ela deseja falar com nosso sultão.
Os olhos do grão-vizir brilharam:
- Como é que ela se chama?
- Se entendi bem, senhor, o nome dela é Fábula.
- O quê? - disse o grão-vizir completamente encantado - A Fábula quer entrar em nosso palácio? Mas que grande notícia! Para que ela seja recebida como merece, ordeno que cem escravas a esperem com presentes magníficos, flores perfumadas, danças e músicas festivas.
As portas do grande palácio de Bagdá se abriram graciosamente e por elas finalmente a bela andarilha foi convidada a passar.
Foi desse modo que a Verdade, vestida de Fábula, conseguiu conhecer um grande palácio e encontrar com Haroun Al-Raschid, o mais fabuloso sultão de todos os tempos.

Machado, Regina - O violino cigano e outros contos de mulheres sábias - São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

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