Todo ano é a mesma coisa....Tenho mil resoluções de Ano Novo, escrevo-as todas e me ponho a imaginar como será a vida quando elas se cumprirem. Quando dançava com Ana Figueiredo, no final de cada ano ela confeccionava cadernos preciosos para servir de diários de viagem na dança,nos mitos e na vida. Num destes cadernos ela incluiu este texto de Frei Betto e passei a usar estas resoluções como proposta para os anos que viriam...
Alvíssaras
No próximo ano, fecharei a minha caixa de Pandora e farei passarinhar todos os bons propósitos que desafiam a minha fé. Recolherei num jardim de tulipas essa tristeza d’alma que definha o meu ego arrastada pela vaidade.
No próximo ano, soterrarei de perdões o meu mal-querer e de afagos essa sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Erguerei a minha taça à vitória do outro e brindarei de louvores as conquistas dos que invadem a minha reserva de caça. Serei dom e não dor.
No próximo ano, fecharei as asas da ambição e, vazio de desejos, cavarei túneis no mais profundo de mim mesmo para deixar fluir as águas da plenitude.
No próximo ano, desviarei o olhar da lascívia que esgarça o meu espírito e os ouvidos aos tambores que me impedem dançar na contramão. Não buscarei senão os odores suaves da brisa matinal e darei ao meu paladar o que amarga a língua e adoça o espírito.
No próximo ano, porei em prática sábias lições de vida: pão que se guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o contrário do medo não é a coragem, é a fé. Sairei à rua repleto de silêncio, grávido do ser que me transfigura em morada divina.
No próximo ano, segredarei aos peregrinos os três aforismos de meu bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre pretérito ou futuro.
No próximo ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de suculentas alegrias e nem darei a meu corpo o que não empanturra o espírito.
No próximo ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para em seus pés irradiar sombras.
No próximo ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem boas-novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições.
No próximo ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio. Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o fragor das ondas fira a pele porosa das praias.
No próximo ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça, nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios. Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que suplicam uma côdea de pão e um gole de paz.
No próximo ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e, recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até embriagar-me de insensatez.
No próximo ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos.
No próximo ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda-gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens.
No próximo ano, nomearei para o governo da cidade um cavaleiro que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao clamor dos desvalidos.
No próximo ano, farei de Deus o meu pai e o meu pão, e abrirei em laços o meu abraço, até transmutar solitários em solidários. Amarei sobre todas as coisas, para que a minha riqueza, despojada de bens, seja farta em afetos. Fecharei os olhos para ver melhor e, ao crepúsculo, serei consumido e consumado pelas chamas que ardem no lado avesso do meu ser.
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