Bela história que assim como o Natal aponta para o ciclo de vida-morte-vida e para todas as maravilhas que brotam disso. Quando pela primeira vez li este conto só me foquei na tristeza da morte...Agora consigo compreender que a vida sempre volta e isto muito me conforta.
Nesse quartinho frio no sótão, não havia luz a não ser por uma janelinha embaçada na lateral do telhado, através da qual brilhava aquela estrela enorme.
"Ai, pobre de mim", pensou o pinheiro tateando todos os galhos para ver se havia alguma fratura. "o que eu fia para ser abandonado num lugar tão frio e solitário?"
Mas ninguém ouviu. E ali o pinheiro ficou muitos dias e muitas noites.
Certa noite, porém, com o canto do olho, o pinheiro viu quatro pontos vermelhos reluzentes. Eram os olhos de dois ratinhos minúsculos que ocupavam as paredes do sótão. "Ah", disse-lhes em voz baixa, "ah, minhas senhoras, sabem me dizer quando virão me buscar, quando voltarei para a sala especial?" O camundongo de macacão e cachecol começou a rir e a gaguejar: "V-v-v-vir para levar você de volta para a sala especial? Ha, ha, ha."
Mas o outro camundongo, de vestido e avental branco, cutucou o companheiro e falou com a árvore com gentileza: "Querida árvore, ora, você teve uma vida boa, não teve?"
"Tive", concordou a árvore, com tristeza.
"Ah, sei que você sentia ter nascido para essa vida, tanto que não desejava que ela mudasse. Mas..." , e nesse ponto ela afagou a árvore, "todas as coisas boas, árvore querida, mesmo as coisas boas, têm seu fim."
"Essa época precisa terminar?" Indagou o pinheiro.
"Sim", respondeu o camundongo, erguendo a mão e acariciando-a novamente. "Essa época já terminou. Mas agora começa um tempo diferente. Uma nova vida, um tipo de vida diferente sempre se segue à antiga. Você vai ver."
E os dois camundongos fizeram companhia à arvore a noite inteira. Contaram histórias e cantaram todas as músicas que conheciam. O pinheiro perguntou se os camundongos não gostariam de subir nos seus galhos para se aquecer, e eles disseram que sim, muito obrigado, e subiram. Juntos eles dormiram durante a noite escura com a grande estrela lá fora se aproximando cada vez mais da janela, quase como se soubesse de seus destinos e, com pena, lançasse sua luz ainda mias sobre eles.
Pela manhã, o pinheiro e os camundongos foram despertados abruptamente pelo ruído de passos pesados na escada, e o casal de camundongos saltou dos galhos do pinheiro. "Adeus, querido amigo. Lembre-se de nós como nós nos lembraremos de você e da sua bondade." E os camundongos correram para a fresta na parede.
A porta do sótão foi aberta com violência, e o pai, usando um gorro de lã e um sobretudo, agarrou o pinheiro e o arrastou pela longa escada abaixo, pela porta, até o quintal. Ali, deitou o pinheiro num toco velho e ergueu muito alto um machado enorme, que caiu com o mais terrível dos pesos, provocando os ruídos mais medonhos de madeira dilacerada. Com o primeiro golpe, a árvore achou que ia morrer com a dor, e antes do segundo já estava inconsciente.
Muito tempo depois, o pinheiro acordou novamente no canto da sala especial e, embora não se sentisse muito bem, parecia que lhe faltavam apenas sua copa verde e que seus braços estavam arrumados de um modo totalmente diferente, em pedaços. No entanto, viu, nas poltronas diante da lareira, o velho casal que conhecera quando chegou à casa, vindo da floresta. Eram eles que haviam banhado seu ferimento com água fresca. Ali estavam eles, bem juntinhos diante do fogo. Apesar do seu estado, o pinheiro sorriu com o amor que via entre os dois.
O velho levantou-se e jogou um dos braços do pinheiro no fogo. Embora de início o pinheiro resistisse e protestasse, logo compreendeu, enquanto a chama queimava cada vez mais fundo no seu coração, que aquela era sua alegre missão no mundo - dar calor para pessoas como essas. Ah, ser aquecido de dentro para fora pelo amor, e de fora para dentro pelo amor de alguém como ele.
O pinheiro ardeu então com uma força ainda maior. "Ah,nunca pensei que pudesse queimar com tanto brilho, que pudesse encher uma sala com tanto calor. Amo esse velhos com todo o meu coração." O pinheiro e todos os nós na sua madeira - e no seu cerne - explodiam de alegria nas chamas.
Noite após noite, o pinheiro permitia essa entrega. Era tão completa sua alegria por ser útil e ter vida que ele queimou e queimou até não restar mais nada dele, a não ser as cinzas que jaziam no fundo da lareira.
Quando estava sendo varrido da lareira pelo velhos, pensou que sua vida fora gloriosa, mais do que esperara, só que agora a nada poderia aspirar.
O casal de velhos era muito cuidadoso e, com suas mãos velhas e sábias, varreu delicadamente cada fragmento de cinzas da lareira. Puseram as cinzas num saco macio e muito usado e o guardaram até a chegada da primavera.
Quando a terra começou a se aquecer, o velho e a velha trouxeram para fora da casa o saco de cinzas, entraram pelos jardins e espalharam cuidadosamente as cinzas do pinheiro por todas as videiras e também por todas as suas terras. Eles misturaram as cinzas do pinheiro ao solo. Com o tempo, quando as chuvas e o sol da primavera chegaram para ficar, as cinzas sentiram sinais de vida por baixo delas.
Aqui e acolá, por baixo, através e em volta das cinzas, surgiam minúsculos brotos verdes das entranhas do solo, e o pinheiro deu milhares de sorrisos e milhares de suspiros na sua felicidade por voltar a ser útil.
"Ai, eu não sabia que podia virar um monte de cinzas e ainda assim voltar a produzir tanta vida nova. Que sorte coube à minha vida. Cresci no isolamento da floresta. Mais tarde, que belos dias e noites de copos a tilintar, de luz de velas e cantorias eu vim a conhecer. Na minha época de solidão e carência, na mais escura das noites, tive a amizade de estranhos, como se fôssemos uma só família, ou até mais do que isso. Mesmo quando estava sendo dilacerado pelo fogo, descobri que podia emitir imensa luz e calor do meu próprio coração. Que sorte, como fui afortunado.
"Ah", suspirou o pinheiro, " de tudo que cresce, cai e cresce novamente, é só o amor pela vida nova, e apenas ele, que dura para sempre. Agora estou em toda a parte. Está vendo como vou longe?"
Naquela noite, quando a grande estrela cruzava o céu noturno do universo, o pinheiro jazia sobre a terra abençoada, aninhando-se junto às raízes e sementes para aquecê-las com suas próprias cinzas, nutrindo para sempre todas as coisa que crescem; e essas, por sua vez, nutrindo outras, que por sua vez nutririam ainda outras, por todas as gerações futuras. Naquela lindíssima terra, da qual ele vinha e para a qual agora voltava, ele dormiu bem e teve sonhos profundos, cercado ali - como um dia estivera cercado antes no meio da floresta - por aquilo que é muito maior, mais majestoso e muito mais antigo do que jamais se conheceu.
Estés,Clarissa Pínkola, O Jardineiro que tinha fé: uma fábula sobre o que não pode morrer nunca - Rio de Janeiro,: Rocco, 1996
Nenhum comentário:
Postar um comentário