Conta a lenda que histórias podem curar. Dores do corpo e mágoas da alma. Esta mesma lenda diz que todos temos um contador de histórias interno, sábio e amoroso. Apenas precisamos aquietar, acender o nosso esquecido fogo interno e a história que pode nos curar virá...
Wang-fo
O velho Wang-fo avançava lentamente pelas ruas do reino de Han porque parava com muita frequência para observar o mundo natural. Para ele, nada valia a pena comprar, exceto pinceis, potes de laca, tinta e rolos de seda e papel-arroz. O seu discípulo, Ling, carregava um saco repleto dos esboços de seu mestre, curvado como se estivesse carregando o mundo nos ombros. Para Ling, o saco estava cheio de montanhas cobertas de neve, temporais na primavera, e a face da lua de verão.
Num dia fatídico, Wang-fo foi convocado ao Palácio Imperial onde o imperador sentava-se num trono alto, em seu jardim de meditação. Circundado pelas pinturas de Wang-fo, esse imperador havia sido criado na solidão e nunca havia se sentido livre para se expressar. Aos 16 anos, finalmente tivera permissão de olhar a vida fora do palácio pela primeira vez, mas achou-a menos bela do que as pinturas do mestre. Com uma amargura trágica, o jovem imperador frustrado gritou: "Esse mundo não passa de uma massa de cores confusas, atiradas no vazio por um pintor insano, e manchadas por nossas lágrimas".
O desejo do imperador pela beleza além deste mundo se transformou em desgosto frente à aspereza da realidade. Ele concebeu um castigo para o pintor, cujo talento o havia deixado cheio de admiração. Decretou que os olhos do artista, que haviam visto tamanha beleza, fossem queimados e as mãos que o haviam expressado fossem cortadas. Mas primeiro ele assassinou Ling, o servo fiel do artista. A seguir, a um sinal do dedo mínimo do imperador, dois eunucos, de modo respeitoso, levaram adiante o rolo de pergaminho inacabado no qual Wang-fo havia esboçado a imagem do mar e do céu. Wang-fo selecionou um dos pinceis que um escravo mantinha à disposição dele e começou a espalhar grandes traços azuis no mar inacabado. Um frágil barco a remo emergia das pinceladas do pintor e agora ocupava todo o primeiro plano do pergaminho de seda. O som rítmico dos remos surgiu na distância, rápido e ávido como o bater de asas.
Então pela mágica do talento do velho mestre, Ling ergueu-se e ajudou o mestre a entrar no barco-espírito. Conforme o som dos remos enchia a sala, forte e constante como o bater de um coração, Wang-fo terminou a pintura e o imperador, inclinando-se para a frente, uma mão acima dos olhos, observou o barco de Wang navegar para longe, em meio a névoa dourada, e desaparecer. O pintor e o seu discípulo desapareceram para sempre no mar azul que Wang-fo havia acabado de criar.
Mellon, Nancy - " Corpo em equilíbrio: o poder do mito e das histórias para despertar e curar as energias físicas e espirituais" São Paulo, Cultrix, 2010
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